sábado, 17 de outubro de 2020

 

 

A linguagem humana na era digital

 

A revista Veja publicou, na edição de 8 de julho de 2020, uma reportagem de interesse dos linguistas. Lê-se, nas páginas 84-85, que o suíço Balthasar Bickel, da Universidade de Zurique, desenvolveu uma pesquisa com o intuito de relacionar o desenvolvimento da agricultura ao aparecimento de novos sons na linguagem humana.

Segundo suas conclusões, mudanças na dieta alimentar modificaram a mandíbula dos homens até então acostumados a ingerirem a carne dura de grandes animais. Escreve a revista que, graças ao cultivo do trigo e da cevada, o Homo Sapiens do período neolítico pôde saborear alimentos macios em vez da carne tesa de um antílope. Essa modificação permitiu que os dentes superiores se projetassem, assumissem a configuração que apresentam hoje e possibilitou também que se pronunciassem os fonemas /f/ e /v/, presentes em uma série de línguas entre as quais pode ser citada a portuguesa.

Se o trabalho citado vasculhou a relação existente entre o modus vivendi de nossos ancestrais e o desenvolvimento de sua linguagem, recentemente, os interesses de Bickel se voltam para a influência que a era digital pode exercer em nossa forma de expressão. A hipótese que ele levanta agora é que os humanos teremos de modificar nossa fala em decorrência do contato cada vez mais frequente que mantemos com a inteligência artificial.

Os cientistas já constataram não ser fácil a nossas interlocutoras digitais - como a Siri, da Apple, e a Alexa, da Amazon - compreender o modo como falamos, sempre crivado de gírias, interrupções, formas sincopadas. Tendo em vista essas dificuldades e a presença cada vez maior de parceiros artificiais, seremos obrigados a alterar nossa articulação para que eles possam nos entender. Note que, quando nos comunicamos com robôs – imagine-se ao telefone, procurando uma informação da rede bancária - temos de falar mais pausadamente. Se quisermos ser entendidos, somos forçados a articular melhor as palavras. Diante dessas constatações, não parece inconcebível concluir que a era digital trará decorrências ao modo como nos expressamos.

Mas, ao lado dessas modificações, que interiorizamos com certa facilidade, espera-se que a tecnologia traga descobertas mais impactantes.  Relata a Veja que a Universidade de Zurique desenvolve um projeto que se assemelha a uma cena de ficção científica: durante a cirurgia de um paciente, foram instalados, em seu cérebro, eletrodos que captaram fragmentos de seu pensamento!

Tendo em vista essas constatações, observa Bickel que, em breve, será possível prever o que alguém está pensando antes que a pessoa diga. Prossegue o linguista, ainda segundo a revista: Isso vai levar a comunicação humana para outro patamar, transformando tudo o que fizemos até aqui.

Certamente, as descobertas são fascinantes em termos científicos, mas é de perguntar se, diante desse cenário, nossa intimidade não ficará ainda mais devassada do que tem sido até o momento.

 

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quarta-feira, 30 de setembro de 2020



Ruídos na comunicação

         

          Comunicar, já escrevia Izidoro Blikstein na página 20 de seu livro Técnicas de Comunicação                  Escrita (1985), é tornar comum um pensamento. Entretanto, alguns fatores podem dificultar ou              impedir que a comunicação se processe a contento. Esse fato ocorre quando surgem os chamados            ruídos.

          É do mesmo Blikstein a definição que segue:

Ruído: interferência de ordem física, psicológica ou sociocultural que provoca uma descodificação e uma resposta não esperada ou não desejada pelo remetente. (1985:94)

 No livro Linguagem Jurídica e Argumentação (2014:86), Trubilhano e Henriques retomam esse conceito e tratam-no da seguinte forma: todo e qualquer obstáculo que impeça a atividade de comunicação.

Acrescentam os autores que pode haver ruído a partir de qualquer um dos elementos da comunicação, ou seja, do emissor, do receptor, da mensagem, do código, do canal ou do referente.

O obstáculo diz respeito ao emissor, por exemplo, se este não for capaz de compor uma mensagem de forma clara e compreensível para seu interlocutor. É o que pode acontecer, por exemplo, com alguém que se encontre sob forte emoção e que necessite falar sobre o fato que o abalou tão profundamente. Com certeza, a mensagem se apresentará truncada, crivada de interrupções que dificultarão o entendimento. Ou, pense-se ainda no caso de qualquer profissional – seja da medicina, do direito, da engenharia, do mecânico de automóvel - que produza um discurso, falado ou escrito,  cujo teor seja incompreensível a quem ele se dirige.

Mas o ruído se concentrará no receptor se ele se mostrar indiferente às palavras do enunciador, se não apresentar nenhum esforço que vise entender o texto enviado ou se não tiver um repertório capaz de fazê-lo entender o que está sendo transmitido. Imagine alguém que se proponha assistir a uma palestra sobre aprofundamentos da física quântica se não possui subsídios que lhe possibilitem entender o que o palestrante expõe.

O ruído poderá ser atribuído ao código caso este não for comum aos dois interlocutores: se alguém quiser pedir uma informação em chinês a um brasileiro, seu objetivo só será atingido se o brasileiro tiver algum conhecimento de mandarim. Caso contrário, a comunicação não se efetivará. Da mesma forma, o emprego de um jargão profissional quando se fala a um leigo matéria não levará a um efetivo ato de comunicação.

Imagine-se agora uma situação em que um doutor em astronomia esteja empenhado em transmitir seus conhecimentos a uma criança de sete ou oito anos. Evidentemente, não será possível um intercâmbio, uma vez que os referenciais dos dois interlocutores são muito distantes um do outro. Nessas circunstâncias, o ruído está atrelado ao referente.

Por seu turno. falhas no equipamento de informática, por exemplo, poderão impedir a continuidade dos trabalhos de cientistas ou professores que estudam, a distância, um mesmo problema. Nesse caso, a comunicação seria suspensa, não se efetivaria. Ou, em outro exemplo, a falta de energia elétrica geraria problemas em uma transmissão radiofônica, que necessita da eletricidade para se efetivar. As citadas são situações em que o ruído se localiza no canal que estaria possibilitando a comunicação

Por fim, aparecerão dificuldades se a mensagem for produzida sem considerar o repertório do enunciatário. Um texto criado nessas condições – muito complexo e  dirigido a quem tem escolaridade básica; com linguagem ultrapassada e direcionado a um jovem; crivado de expressões técnicas e endereçado a um leigo, por exemplo – impedirá a efetivação do ato comunicativo.

Mas é necessário considerar, ainda com Blikstein, que, por vezes, o ruído pode apresentar um efeito positivo. É o que ocorre quando ele é utilizado como elemento de impacto ou surpresa (:94), causando uma quebra na expectativa do interlocutor. É um recurso empregado pela publicidade, pelo jornalismo, pela literatura quando têm em mente chamar a atenção do outro. Veja-se o texto produzido por um shopping center curitibano na época do Dia das Mães, ocasião em que, entre os clientes, sorteava-se uma perua Wolkswagen, modelo Parati:


                        Este carro é Parati, mamãe.

Nele o emprego da maiúscula e a grafia fora dos padrões da norma culta – o esperado seria para ti, mamãe – geram uma ambiguidade, criam o estranhamento,  despertam o riso, mas chamam a atenção para o sorteio do carro.

Dessa formar, os ruídos, como muitas outras facetas da linguagem humana, revelam o aspecto multifacetado que ela possui, responsável por sua opacidade mas também pelo seu fascínio.

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Referências:

BLIKSTEIN, Izidoro. Técnicas de Comunicação Escrita. São Paulo: Ática. 1985.

HENRIQUES, ANTÔNIO & TRUBILHANO, Fábio. Linguagem Jurídica e Argumentação. São Paulo: Atlas. 2014.

  

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020


Argumentação e linguagem
Rápida incursão pelo livro de Ingedore Koch



Apresentação

Lançada pela Editora Cortez, o livro não é novo. A quinta edição, que tenho em mãos, data de 1999. As obras de Koch, entretanto, sempre merecem atenção. Não há quem não veja a autora como estudiosa séria, uma referência quando se trata de estudos sobre a linguagem.

Argumentação e linguagem apresenta prefácio de Luís Antônio Marcuschi e seus capítulos têm, entre si, um denominador comum: todos tratam, evidentemente, da linguagem. Não se estruturam, entretanto, em torno de um único tópico. Como a autora esclarece na página 18 da nota introdutória, as ideias que se encontram no volume constituem releituras de comunicações apresentadas em congressos, artigos publicados em revistas especializadas e capítulos da tese de doutorado, defendida por ela.

O conteúdo

Segundo suas palavras. o objetivo final da publicação é colaborar com o aprimoramento da leitura e da produção de textos em língua portuguesa. Para tanto, organizou o livro em cinco capítulos.

O primeiro recebe o nome de “Discurso e argumentação” e sente-se, ali, forte influência das ideias de Carlos Vogt e de Oswald Ducrot. Nele, a pesquisadora destaca a presença marcante da orientação argumentativa da linguagem, afirmando que, a todo enunciado,  subjaz uma ideologia Partindo, portanto, do princípio de que a argumentação é uma atividade intrínseca ao ato da fala, Koch sustenta a tese de que o raciocínio argumentativo é um fator fundamental não apenas à coesão como também à coerência textual.

Aceito esse postulado, não se justifica distinguir – como fazem os estudos tradicionais - textos argumentativos de dissertativos, uma vez que tal diferença levaria a eliminar, da dissertação, o posicionamento pessoal, devendo esse tipo de texto ficar restrito a uma mera exposição de conhecimentos. Entretanto, escreve a autora nas páginas 19/20, a simples seleção das opiniões a serem reproduzidas já implica, por si mesma, uma opção. Seguindo essa linha de raciocínio, mesmo nos textos narrativos e descritivos, a posição do autor – entenda-se: seu arcabouço ideológico - está  presente em maior ou em menor intensidade.

O segundo capítulo, bastante sintético, chama-se “Graus de complexidade das relações textuais”. Segundo o subtítulo, as ideias ali contidas foram apresentadas em 1981, em um evento da SBPC.
Nele, a autora parte do princípio de que, para se estudarem com adequação as relações intertextuais, é necessário levar em conta não apenas os enunciados produzidos, mas, sobretudo, a enunciação que os gerou.

Com base nessa premissa, prossegue Koch, podem ser identificados, entre os enunciados que se articulam para produzir um texto, dois tipos de relações: as lógicas ou semânticas e as denominadas paralógicas, discursivas ou pragmáticas.

Entre as primeiras, identificam-se as articulações presentes na conjunção, na disjunção, na equivalência; entre as segundas, os casos de concordância verbo-nominal; as relações fonológicas ou suprassegmentais, como a entonação, entre outras.

“As marcas linguísticas da argumentação” é o nome do terceiro e mais longo capítulo. Ele está dividido em nove tópicos que tratam, entre outros assuntos, do papel dos tempos verbais no discurso, da pressuposição, dos verbos performativos, das modalidades do discurso e, antes de encerrar, chega a fazer uma incursão pela retórica aplicada.

Entre os nove tópicos, encontram-se dois focados na temática central do livro, ou seja, a argumentação. No número cinco, estudam-se os operadores argumentativos, ocasião em que a autora procura valorizar o papel dos elementos de ligação interfrásiticos – caso de Ele quer ser até presidente ou de Ele quer ser pelo menos prefeito (p.105) – tratados com pouco destaque pelas gramáticas tradicionais.

Conclui a autora, na página 110, que tanto nas gramáticas, como no ensino de língua materna, tem-se dado maior ênfase ao estudo dos morfemas lexicais e dos gramaticais flexionais e derivacionais, relegando a um plano totalmente secundário os elementos aqui abordados, ou seja, os operadores argumentativos.

No tópico número oito, apresentado durante a realização do GEL, em maio de 1982, encontram-se reflexões sobre “Argumentação e autoridade polifônica”. Nele, Koch envereda, inicialmente, por esclarecimentos acerca do que vem a ser polifonia, citando, uma vez mais, o pensamento de Ducrot e fazendo menções a Perelman e a Vogt. Esclarece que esse conceito pode ser entendido como a incorporação feita, por um locutor, de asserções produzidas por outros locutores.

Alerta, entretanto, na página 143, que a polifonia não se restringe ao discurso relatado - seja direto ou indireto. Escreve ela que um enunciado passa a ter uma interpretação polifônica  se o ato ilocucionário de asserção for atribuído a um personagem diferente do locutor L, podendo, assim, o destinatário  desse ato ser diferente do alocutário e, até mesmo, ser identificado com o próprio locutor L.

No final desse tópico, a autora elenca algumas vantagens no uso  da autoridade polifônica na produção de um texto. De acordo com seu pensamento, esse recurso...

     evita o discurso autoritário;
        prevê os possíveis argumentos do interlocutor, reconhecendo-os como legítimos e incorporando-os à  própria argumentação;
    imprime maior poder de persuasão ao próprio discurso;

     Apresentadas no congresso da SBPC de julho de 1983,“Algumas reflexões sobre o ensino da leitura” compõem o capítulo quatro. Bastante sintético, suas três páginas (160-162) ratificam as posições defendidas hoje pelos estudiosos da linguagem, ou seja, nas salas de aula, devem ser desenvolvidas as competências relacionadas ao ato de ler: compreender mensagens - em todos os níveis que elas possam apresentar – articulá-las com outros textos, desenvolver o espírito crítico do aluno, abrir-lhe horizontes.

   No último capítulo, “Análise de textos”, a pesquisadora se debruça sobre o estudo de quatro publicações jornalísticas, empenhando-se em justificar o emprego dos recursos linguísticos feitos pelos autores dessas matérias. Tem lugar, então, o estudo dos tempos verbais, dos modalizadores, dos operadores argumentativos, das pressuposições entre outros assuntos.
   
      Finalizando...

     Facilmente se constata que o presente texto constitui uma demonstração bastante sintética do que pode ser encontrado nas páginas do trabalho de Ingedore Koch. Como em todos os demais estudos publicados por ela, Argumentação e Linguagem revela a presença de uma estudiosa competente, séria e inovadora. Com seu contato, o leitor tem sempre a aprender.

     A leitura do livro é, portanto, recomendada. Talvez seja conveniente, entretanto, restringir o espectro de quem irá lê-lo. Sem dúvida, ele interessa a estudantes de Letras, de Comunicação ou a quem tiver curiosidade pela área da linguagem. Mas o conteúdo não é de fácil compreensão. Por vezes, a autora desenvolve um raciocínio bastante abstrato cujo entendimento se torna árido mesmo para quem tem certa familiaridade com a área.

     De qualquer forma, enfim, é um rico material de consulta para quem respeita o espírito investigador da ciência, para quem gosta de refletir sobre os fenômenos linguísticos e para quem tem um raciocínio crítico suficientemente aguçado para questionar os postulados da tradição gramatical.

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