quinta-feira, 29 de maio de 2014

As mudanças na língua

Voltemos a Gargantua, mas para tratar de questões referentes à mudança linguística.

Quem, por acaso, consultar a versão da obra de Rabelais disponibilizada pela Amazon para o e-book, logo perceberá que o francês usado pelo autor difere muito do empregado atualmente.

Para que você possa ter uma ideia, compare as duas formas de expressão:
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francês renascentista                   francês moderno                        português
fay ce que vouldras                       fais ce que voudras                        (faça  que quiser)
toute leur vie estoit                        toute leur vie était                           (toda sua vida)
se levoient du lict                          se levaient du lit                               (se levantavam da cama)
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Essas alterações ocorrem porque, como todos sabem, a língua não é estática. Ao contrário, por ser uma manifestação humana, ela muda constantemente, embora nós, como usuários, nem sempre nos demos conta de tal fenômeno. Na verdade, tais mudanças acontecem lentamente, mas podem ser sentidas – quando são – de uma geração a outra. Compare sua forma de falar com a de seus avós, por exemplo. Certamente eles não fazem uso de um modo tão descontraído como o seu na hora de se expressar!

Esse fato se verifica em todas as línguas. O português, portanto, não foge à regra. Nele existem distinções semelhantes às que encontramos no francês. Leia o trecho citado por CHAGAS (2002: 143). Trata-se de um texto do século XVII:

Do que succedeo na Bahya, sendo Capitão Mor, Francisco Nunes Marinho de Eça ...

E note que estamos tratando apenas da língua escrita e de um tipo de registro: o culto! Há outras formas de diversificação linguística além dessa, que é chamada histórica (ou diacrônica, se quiser um termo mais especializado). Há a social ou diastrática (cada estrato da sociedade possui uma forma de expressão: os advogados usam a língua de um modo; os médicos, de outro); há a geográfica ou diatópica (pense na fala de um português e na de um brasileiro; na de um paulista e de um nordestino).

Até de indivíduo para indivíduo há modificações no modo de se exprimir. Pense em você atuando em diferentes situações: conversando com um amigo; dirigindo-se a uma pessoa que possui um cargo mais alto que o seu na empresa em que trabalha; tratando com uma criança. Certamente sua forma de falar não é a mesma em todas as circunstâncias!

Quem estuda essas alterações na linguagem é uma disciplina chamada sociolingüística que, à semelhança do que ocorre com as obras de Rabelais, possui muitos trabalhos publicados sobre o assunto. Uma vez mais, o que se faz aqui é uma referência extremamente simples do muito que se pode consultar sobre o tema.

Caso queira saber mais, leia:

ALKMIM, Tânia. 2000. Sociolinguística. In: MUSSALIN, Fernanda e BENTES, Anna Christina (org).  Introdução à lingüística. São Paulo: Cortez. Vol. 1.
CHAGAS, Paulo. 2002. A mudança lingüística. In: FIORIN, José Luiz (org). Introdução à linguistica. Objetos teóricos. São Paulo: Contexto.



terça-feira, 27 de maio de 2014

Gargantua

Esclarecimento


Certamente você sabe que, sob o rótulo linguagem, cabem muitos assuntos: a problemática do certo e do errado; estudo da estrutura da língua; análise das ideias de um discurso e também, naturalmente, observações sobre literatura, a expressão mais bem acabada da linguagem. É sobre um texto literário que trataremos neste espaço, focalizando a figura de François Rabelais, um escritor do Renascimento francês.

Rabelais nasceu em 1494 e morreu, provavelmente, em 1551. Foi médico, mas passou para a história como um autor polêmico, perseguido por causa de suas convicções.

Ainda que haja outras, os estudiosos destacam duas de suas obras: Pantagruel (1532) e Gargantua (1534) (pronuncie a última palavra como se fosse oxítona). Uma história completa a outra, pois Pantugruel é filho de Gargantua, embora – como se pode perceber pelas datas registradas acima, Pantagruel – que trata do filho – foi escrita antes de Gargantua – que trata do pai.

Um pouco da história de Gargantua


O protagonista era um gigante, filho de Grandgousier e de Gargamelle e, como seu pai, dono de um grande apetite e de uma força descomunal. O pai queria muito bem ao filho e preocupou-se em dar-lhe boas condições de vida, nelas inclusa uma boa educação. O jovem era esforçado, empenhava-se nas tarefas, mas a orientação que recebia, calcada nos modelos medievais, passou a ser criticada por outros educadores por ser muito teórica, pouco condizente com a vida prática.

Grandgousier resolveu, então, substituir o mestre a quem a formação de Gargantua estava entregue, colocando, em seu lugar, outro mais sintonizado com as tendências do momento, marcado por um pensamento de caráter humanista, que começava a se firmar na Europa da época.

Em vista disso, o jovem se transferiu para Paris e deu início a sua nova vida de estudante. Entretanto, como o reino do pai foi invadido, voltou à terra natal para combater o inimigo.

Algumas palavras sobre a obra


A organização do livro é bastante simples e o enredo, linear: trata do nascimento, da infância, dos estudos da personagem que, já adulta, participa da guerra contra Picrochole, o invasor. A narrativa – que, por vezes, faz uso de termos chulos - apresenta aspectos cômicos, que tangenciam o pastiche, mas não é difícil perceber que o propósito de Rabelais vai além de despertar o riso: a obra constitui uma tomada de posição diante de assuntos relevantes não só para a época, como também para a história do homem já que reflete sobre questões relativas à educação das crianças;  às táticas de guerra; às relações entre vencedores e vencidos; ao comportamento do clero; às superstições religiosas.

Concluindo


Os textos de Rabelais requerem análise cuidadosa e já mereceram muitas páginas de estudo. O que se registra aqui são, pois, comentários excessivamente rápidos sobre Gargantua.Eles visaram apenas chamar a atenção para esse pensador do século XVI e, em particular, estimular a leitura de suas obras.

Se você quiser saber mais


Consulte o livro de André LAGARDE e Laurent MICHARD: Les grands auteurs. XVIème siécle. France: Editions Bordas. 2014.




sexta-feira, 23 de maio de 2014

A articulação da linguagem

Você já reparou como os elementos que constituem a linguagem se articulam entre si? Veja: pense em dois sons do português. Suponhamos que você tenha escolhido /m/ e /a/. Una os dois e terá /ma/. Agora associe mais dois /t/ e /o/, junte-os aos anteriores e terá a palavra mato. Está certo? Pois para formar essa palavra, você ‘articulou’ elementos da língua.
Entretanto, ninguém fala a palavra fora de um contexto. Dentro do processo de comunicação, ela é sempre colocada ao lado de outras palavras e gera um sentido mais amplo. Cria-se, assim, uma frase. Se continuarmos a fazer uso da palavra mato, poderíamos ter: A prefeitura tem de cortar o mato desta praça ou O mato está crescendo muito no jardim do prédio.
Essas frases também serão colocadas dentro de um contexto maior, já que ninguém diz A prefeitura tem de cortar o mato desta praça se a situação comunicativa não o exigir.
Espero que, com esses exemplos, você tenha percebido que as línguas se organizam por meio de articulações.

A diversidade de concepções

A explicação que apresentamos aqui é uma forma bastante rudimentar de tratar da articulação da linguagem. Há outros modos mais elaborados que partem de outro ponto de vista e que são tão corretos quanto  que você acabo de ler. É o caso de André Martinet, um lingüista francês (1908-1999) ligado a um movimento chamado funcionalismo linguístico.(*)
Segundo esse estudioso, uma língua natural, quer dizer, a  humana, articula-se em dois planos: no primeiro - que ele chama de ‘primeira articulação’ - encontramos as palavras, as frases e outro elemento - sobre o qual não falaremos no momento - chamado ‘morfema’. Todos eles são providos de significação, quer dizer, transmitem um sentido.
No segundo plano – ou ‘segunda articulação’ – estão elementos que, sozinhos, não têm sentido nenhum. Só criam significado quando se articulam com unidades maiores. É o caso do /m/, do /a/, do /o/ com que iniciamos nosso texto. Sós, não nos transmitem idéia nenhma.
Note que, na explicação que demos, partimos de elementos menores para chegar aos maiores. Martinet faz o caminho inverso: parte dos elementos maiores para chegar aos menores. Atualmente, esta última versão é mais aceita.
O que importa aqui, entretanto, é que você guarde essa idéia: os elementos que  constituem as línguas naturais não estão soltos; ao contrário, articulam-se  entre si. 
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(*) Só para você saber: a Linguística é uma ciência que  estuda a linguagem verbal. Ela possui muitas vertentes, ou seja, muitas formas de abordar o fenômeno lingüístico. Muitas dessas abordagens são interessantes e ultrapassam as questões referentes a falar certo / falar errado, com que estamos acostumados sempre que se fala em língua.
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Para saber mais

Existem muitos estudos que trabalham com a articulação da linguagem. Eles podem ser encontrados na mídia impressa ou na virtual. O livro de Ingedore Villaça KOCH e Maria Cecília P. de SOUZA E SILVA é apenas um deles: Linguística Aplicada ao Português: Morfologia. São Paulo: Cortez. 2011.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Pelos caminhos da linguagem


Preliminares


Como o nome indica, o objetivo deste blog é tratar de questões relacionadas à linguagem. Assim vários  assuntos podem entrar em pauta: desde a natureza da linguagem até suas relações com a sociedade, com a neurologia, com o aprendizado. Mas pode-se também enveredar por aspectos referentes à estrutura de uma língua, a seu funcionamento e uso.
Assim, nosso propósito aqui é, tendo a linguagem como escopo, tratar dos mais diferentes aspectos que dizem respeito a ela. Portanto, o blog se direciona, sobretudo, às pessoas curiosas acerca da área. Acredito que terá pouca serventia aos especialistas nos estudos lingüísticos.
Antes de abordarmos mais especificamente o assunto, tratemos de uma informação que se obtém pela neurologia: segundo o departamento de neurobiologia da Universidade de Chicago, em nosso cérebro, as áreas relativas à linguagem encontram-se ao lado esquerdo de nosso cérebro, ao menos em 90% das pessoas.


Para que serve a linguagem?



A resposta é simples: seu objetivo é estabelecer relações entre seres sejam eles humanos ou não, conforme veremos adiante Como manifestações da linguagem, identificamos, grosso modo, a verbal e a não-verbal.
Como exemplo dessa última, podemos citar a empregada na pintura, na música, na arquitetura, na criada para estabelecer relações entre os computadores. Nós, humanos, usamos com frequência a linguagem não-verbal quando nos comunicamos por meio de expressões faciais, da roupa que usamos, de gestos. Há estudos que analisam nossos movimentos corpóreos e seus autores garantem que tais movimentos transmitem mensagens.
Apesar de nos servirmos de vários códigos para nos expressar, a forma mais empregada pelas sociedades humanas continua sendo a linguagem verbal, ou seja, aquela que se apóia nas palavras.


Linguagem humana e linguagem animal



Antes de nos atermos na linguagem humana, é conveniente enveredar um pouco sobre a linguagem usada pelos animais. Muitos se perguntam se não podemos afirmar que os animais posuem uma linguagem, já que as abelhas, formigas, elefantes respeitam um código, de um sistema rigoroso que permite um intercâmbio entre seus elementos.
No artigo intitulado “Linguagem, língua e lingüística”(2002), Petter refere-se a um estudo de Karl Von Frisch, um zoólogo alemão que revela o modo como atua a comunicação entre as abelhas. Pela descrição das atitudes desses insetos, pode-se concluir que eles são capazes de reter, na memória, informações referentes à posição e distância em que um alimento se encontra. Dessa forma, produzem uma mensagem que simboliza os dados a serem transmitidos.
Entretanto, adverte Petter, com base em reflexões de Benveniste, as diferenças entre a comunicação das abelhas e a linguagem humana é considerável (2002:16). Por exemplo:
a.     as abelhas não se expressam por meio de um aparelho vocal, como fazem os humanos;
b.    sua forma de comunicação não gera uma resposta; cria apenas uma conduta. Ou seja, não se estabelece um diálogo, em que a fala de um gera uma resposta no outro; portanto, uma abelha não constrói uma mensagem a partir de outra, como fazemos nós;
c.     o conteúdo da mensagem é único, não varia, não apresenta criatividade como ocorre com a linguagem humana.
Portanto, mesmo que se possa falar em uma “linguagem” animal, ela está distante da flexibilidade e dos traços que caracterizam nossa forma de comunicação.

Na próxima vez, podemos tratar, mesmo que rapidamente, do modo como se estrutura a linguagem humana.


Referência bibliográfica


PETTER, Margarida M.T. 2002. Linguagem, língua e lingüística. In: FIORIN, José Luiz. Introdução à linguistica. São Paulo: Contexto. PP 11-24.