sábado, 17 de outubro de 2020

 

 

A linguagem humana na era digital

 

A revista Veja publicou, na edição de 8 de julho de 2020, uma reportagem de interesse dos linguistas. Lê-se, nas páginas 84-85, que o suíço Balthasar Bickel, da Universidade de Zurique, desenvolveu uma pesquisa com o intuito de relacionar o desenvolvimento da agricultura ao aparecimento de novos sons na linguagem humana.

Segundo suas conclusões, mudanças na dieta alimentar modificaram a mandíbula dos homens até então acostumados a ingerirem a carne dura de grandes animais. Escreve a revista que, graças ao cultivo do trigo e da cevada, o Homo Sapiens do período neolítico pôde saborear alimentos macios em vez da carne tesa de um antílope. Essa modificação permitiu que os dentes superiores se projetassem, assumissem a configuração que apresentam hoje e possibilitou também que se pronunciassem os fonemas /f/ e /v/, presentes em uma série de línguas entre as quais pode ser citada a portuguesa.

Se o trabalho citado vasculhou a relação existente entre o modus vivendi de nossos ancestrais e o desenvolvimento de sua linguagem, recentemente, os interesses de Bickel se voltam para a influência que a era digital pode exercer em nossa forma de expressão. A hipótese que ele levanta agora é que os humanos teremos de modificar nossa fala em decorrência do contato cada vez mais frequente que mantemos com a inteligência artificial.

Os cientistas já constataram não ser fácil a nossas interlocutoras digitais - como a Siri, da Apple, e a Alexa, da Amazon - compreender o modo como falamos, sempre crivado de gírias, interrupções, formas sincopadas. Tendo em vista essas dificuldades e a presença cada vez maior de parceiros artificiais, seremos obrigados a alterar nossa articulação para que eles possam nos entender. Note que, quando nos comunicamos com robôs – imagine-se ao telefone, procurando uma informação da rede bancária - temos de falar mais pausadamente. Se quisermos ser entendidos, somos forçados a articular melhor as palavras. Diante dessas constatações, não parece inconcebível concluir que a era digital trará decorrências ao modo como nos expressamos.

Mas, ao lado dessas modificações, que interiorizamos com certa facilidade, espera-se que a tecnologia traga descobertas mais impactantes.  Relata a Veja que a Universidade de Zurique desenvolve um projeto que se assemelha a uma cena de ficção científica: durante a cirurgia de um paciente, foram instalados, em seu cérebro, eletrodos que captaram fragmentos de seu pensamento!

Tendo em vista essas constatações, observa Bickel que, em breve, será possível prever o que alguém está pensando antes que a pessoa diga. Prossegue o linguista, ainda segundo a revista: Isso vai levar a comunicação humana para outro patamar, transformando tudo o que fizemos até aqui.

Certamente, as descobertas são fascinantes em termos científicos, mas é de perguntar se, diante desse cenário, nossa intimidade não ficará ainda mais devassada do que tem sido até o momento.

 

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quarta-feira, 30 de setembro de 2020



Ruídos na comunicação

         

          Comunicar, já escrevia Izidoro Blikstein na página 20 de seu livro Técnicas de Comunicação                  Escrita (1985), é tornar comum um pensamento. Entretanto, alguns fatores podem dificultar ou              impedir que a comunicação se processe a contento. Esse fato ocorre quando surgem os chamados            ruídos.

          É do mesmo Blikstein a definição que segue:

Ruído: interferência de ordem física, psicológica ou sociocultural que provoca uma descodificação e uma resposta não esperada ou não desejada pelo remetente. (1985:94)

 No livro Linguagem Jurídica e Argumentação (2014:86), Trubilhano e Henriques retomam esse conceito e tratam-no da seguinte forma: todo e qualquer obstáculo que impeça a atividade de comunicação.

Acrescentam os autores que pode haver ruído a partir de qualquer um dos elementos da comunicação, ou seja, do emissor, do receptor, da mensagem, do código, do canal ou do referente.

O obstáculo diz respeito ao emissor, por exemplo, se este não for capaz de compor uma mensagem de forma clara e compreensível para seu interlocutor. É o que pode acontecer, por exemplo, com alguém que se encontre sob forte emoção e que necessite falar sobre o fato que o abalou tão profundamente. Com certeza, a mensagem se apresentará truncada, crivada de interrupções que dificultarão o entendimento. Ou, pense-se ainda no caso de qualquer profissional – seja da medicina, do direito, da engenharia, do mecânico de automóvel - que produza um discurso, falado ou escrito,  cujo teor seja incompreensível a quem ele se dirige.

Mas o ruído se concentrará no receptor se ele se mostrar indiferente às palavras do enunciador, se não apresentar nenhum esforço que vise entender o texto enviado ou se não tiver um repertório capaz de fazê-lo entender o que está sendo transmitido. Imagine alguém que se proponha assistir a uma palestra sobre aprofundamentos da física quântica se não possui subsídios que lhe possibilitem entender o que o palestrante expõe.

O ruído poderá ser atribuído ao código caso este não for comum aos dois interlocutores: se alguém quiser pedir uma informação em chinês a um brasileiro, seu objetivo só será atingido se o brasileiro tiver algum conhecimento de mandarim. Caso contrário, a comunicação não se efetivará. Da mesma forma, o emprego de um jargão profissional quando se fala a um leigo matéria não levará a um efetivo ato de comunicação.

Imagine-se agora uma situação em que um doutor em astronomia esteja empenhado em transmitir seus conhecimentos a uma criança de sete ou oito anos. Evidentemente, não será possível um intercâmbio, uma vez que os referenciais dos dois interlocutores são muito distantes um do outro. Nessas circunstâncias, o ruído está atrelado ao referente.

Por seu turno. falhas no equipamento de informática, por exemplo, poderão impedir a continuidade dos trabalhos de cientistas ou professores que estudam, a distância, um mesmo problema. Nesse caso, a comunicação seria suspensa, não se efetivaria. Ou, em outro exemplo, a falta de energia elétrica geraria problemas em uma transmissão radiofônica, que necessita da eletricidade para se efetivar. As citadas são situações em que o ruído se localiza no canal que estaria possibilitando a comunicação

Por fim, aparecerão dificuldades se a mensagem for produzida sem considerar o repertório do enunciatário. Um texto criado nessas condições – muito complexo e  dirigido a quem tem escolaridade básica; com linguagem ultrapassada e direcionado a um jovem; crivado de expressões técnicas e endereçado a um leigo, por exemplo – impedirá a efetivação do ato comunicativo.

Mas é necessário considerar, ainda com Blikstein, que, por vezes, o ruído pode apresentar um efeito positivo. É o que ocorre quando ele é utilizado como elemento de impacto ou surpresa (:94), causando uma quebra na expectativa do interlocutor. É um recurso empregado pela publicidade, pelo jornalismo, pela literatura quando têm em mente chamar a atenção do outro. Veja-se o texto produzido por um shopping center curitibano na época do Dia das Mães, ocasião em que, entre os clientes, sorteava-se uma perua Wolkswagen, modelo Parati:


                        Este carro é Parati, mamãe.

Nele o emprego da maiúscula e a grafia fora dos padrões da norma culta – o esperado seria para ti, mamãe – geram uma ambiguidade, criam o estranhamento,  despertam o riso, mas chamam a atenção para o sorteio do carro.

Dessa formar, os ruídos, como muitas outras facetas da linguagem humana, revelam o aspecto multifacetado que ela possui, responsável por sua opacidade mas também pelo seu fascínio.

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Referências:

BLIKSTEIN, Izidoro. Técnicas de Comunicação Escrita. São Paulo: Ática. 1985.

HENRIQUES, ANTÔNIO & TRUBILHANO, Fábio. Linguagem Jurídica e Argumentação. São Paulo: Atlas. 2014.

  

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020


Argumentação e linguagem
Rápida incursão pelo livro de Ingedore Koch



Apresentação

Lançada pela Editora Cortez, o livro não é novo. A quinta edição, que tenho em mãos, data de 1999. As obras de Koch, entretanto, sempre merecem atenção. Não há quem não veja a autora como estudiosa séria, uma referência quando se trata de estudos sobre a linguagem.

Argumentação e linguagem apresenta prefácio de Luís Antônio Marcuschi e seus capítulos têm, entre si, um denominador comum: todos tratam, evidentemente, da linguagem. Não se estruturam, entretanto, em torno de um único tópico. Como a autora esclarece na página 18 da nota introdutória, as ideias que se encontram no volume constituem releituras de comunicações apresentadas em congressos, artigos publicados em revistas especializadas e capítulos da tese de doutorado, defendida por ela.

O conteúdo

Segundo suas palavras. o objetivo final da publicação é colaborar com o aprimoramento da leitura e da produção de textos em língua portuguesa. Para tanto, organizou o livro em cinco capítulos.

O primeiro recebe o nome de “Discurso e argumentação” e sente-se, ali, forte influência das ideias de Carlos Vogt e de Oswald Ducrot. Nele, a pesquisadora destaca a presença marcante da orientação argumentativa da linguagem, afirmando que, a todo enunciado,  subjaz uma ideologia Partindo, portanto, do princípio de que a argumentação é uma atividade intrínseca ao ato da fala, Koch sustenta a tese de que o raciocínio argumentativo é um fator fundamental não apenas à coesão como também à coerência textual.

Aceito esse postulado, não se justifica distinguir – como fazem os estudos tradicionais - textos argumentativos de dissertativos, uma vez que tal diferença levaria a eliminar, da dissertação, o posicionamento pessoal, devendo esse tipo de texto ficar restrito a uma mera exposição de conhecimentos. Entretanto, escreve a autora nas páginas 19/20, a simples seleção das opiniões a serem reproduzidas já implica, por si mesma, uma opção. Seguindo essa linha de raciocínio, mesmo nos textos narrativos e descritivos, a posição do autor – entenda-se: seu arcabouço ideológico - está  presente em maior ou em menor intensidade.

O segundo capítulo, bastante sintético, chama-se “Graus de complexidade das relações textuais”. Segundo o subtítulo, as ideias ali contidas foram apresentadas em 1981, em um evento da SBPC.
Nele, a autora parte do princípio de que, para se estudarem com adequação as relações intertextuais, é necessário levar em conta não apenas os enunciados produzidos, mas, sobretudo, a enunciação que os gerou.

Com base nessa premissa, prossegue Koch, podem ser identificados, entre os enunciados que se articulam para produzir um texto, dois tipos de relações: as lógicas ou semânticas e as denominadas paralógicas, discursivas ou pragmáticas.

Entre as primeiras, identificam-se as articulações presentes na conjunção, na disjunção, na equivalência; entre as segundas, os casos de concordância verbo-nominal; as relações fonológicas ou suprassegmentais, como a entonação, entre outras.

“As marcas linguísticas da argumentação” é o nome do terceiro e mais longo capítulo. Ele está dividido em nove tópicos que tratam, entre outros assuntos, do papel dos tempos verbais no discurso, da pressuposição, dos verbos performativos, das modalidades do discurso e, antes de encerrar, chega a fazer uma incursão pela retórica aplicada.

Entre os nove tópicos, encontram-se dois focados na temática central do livro, ou seja, a argumentação. No número cinco, estudam-se os operadores argumentativos, ocasião em que a autora procura valorizar o papel dos elementos de ligação interfrásiticos – caso de Ele quer ser até presidente ou de Ele quer ser pelo menos prefeito (p.105) – tratados com pouco destaque pelas gramáticas tradicionais.

Conclui a autora, na página 110, que tanto nas gramáticas, como no ensino de língua materna, tem-se dado maior ênfase ao estudo dos morfemas lexicais e dos gramaticais flexionais e derivacionais, relegando a um plano totalmente secundário os elementos aqui abordados, ou seja, os operadores argumentativos.

No tópico número oito, apresentado durante a realização do GEL, em maio de 1982, encontram-se reflexões sobre “Argumentação e autoridade polifônica”. Nele, Koch envereda, inicialmente, por esclarecimentos acerca do que vem a ser polifonia, citando, uma vez mais, o pensamento de Ducrot e fazendo menções a Perelman e a Vogt. Esclarece que esse conceito pode ser entendido como a incorporação feita, por um locutor, de asserções produzidas por outros locutores.

Alerta, entretanto, na página 143, que a polifonia não se restringe ao discurso relatado - seja direto ou indireto. Escreve ela que um enunciado passa a ter uma interpretação polifônica  se o ato ilocucionário de asserção for atribuído a um personagem diferente do locutor L, podendo, assim, o destinatário  desse ato ser diferente do alocutário e, até mesmo, ser identificado com o próprio locutor L.

No final desse tópico, a autora elenca algumas vantagens no uso  da autoridade polifônica na produção de um texto. De acordo com seu pensamento, esse recurso...

     evita o discurso autoritário;
        prevê os possíveis argumentos do interlocutor, reconhecendo-os como legítimos e incorporando-os à  própria argumentação;
    imprime maior poder de persuasão ao próprio discurso;

     Apresentadas no congresso da SBPC de julho de 1983,“Algumas reflexões sobre o ensino da leitura” compõem o capítulo quatro. Bastante sintético, suas três páginas (160-162) ratificam as posições defendidas hoje pelos estudiosos da linguagem, ou seja, nas salas de aula, devem ser desenvolvidas as competências relacionadas ao ato de ler: compreender mensagens - em todos os níveis que elas possam apresentar – articulá-las com outros textos, desenvolver o espírito crítico do aluno, abrir-lhe horizontes.

   No último capítulo, “Análise de textos”, a pesquisadora se debruça sobre o estudo de quatro publicações jornalísticas, empenhando-se em justificar o emprego dos recursos linguísticos feitos pelos autores dessas matérias. Tem lugar, então, o estudo dos tempos verbais, dos modalizadores, dos operadores argumentativos, das pressuposições entre outros assuntos.
   
      Finalizando...

     Facilmente se constata que o presente texto constitui uma demonstração bastante sintética do que pode ser encontrado nas páginas do trabalho de Ingedore Koch. Como em todos os demais estudos publicados por ela, Argumentação e Linguagem revela a presença de uma estudiosa competente, séria e inovadora. Com seu contato, o leitor tem sempre a aprender.

     A leitura do livro é, portanto, recomendada. Talvez seja conveniente, entretanto, restringir o espectro de quem irá lê-lo. Sem dúvida, ele interessa a estudantes de Letras, de Comunicação ou a quem tiver curiosidade pela área da linguagem. Mas o conteúdo não é de fácil compreensão. Por vezes, a autora desenvolve um raciocínio bastante abstrato cujo entendimento se torna árido mesmo para quem tem certa familiaridade com a área.

     De qualquer forma, enfim, é um rico material de consulta para quem respeita o espírito investigador da ciência, para quem gosta de refletir sobre os fenômenos linguísticos e para quem tem um raciocínio crítico suficientemente aguçado para questionar os postulados da tradição gramatical.

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segunda-feira, 8 de setembro de 2014

A linguagem nos estudos da psicanálise


Certamente é um truísmo lembrar o papel fundamental que a linguagem desempenha nas  sociedades humanas. Assim, não foi aleatória a afirmação de Bakhtin segundo a qual nossa vida se estrutura em torno de textos que se alinhavam uns aos outros formando um infindável tecido.É igualmente um truísmo dizer que, dentre todas as linguagens, a mais utilizada é a verbal.

Em decorrência dessas constatações, vários estudos se desenvolveram na área. Eles abrangem desde o exame da estrutura dos diversos códigos linguísticos – como se fez no estruturalismo, por exemplo - até o modo como esses códigos se utilizam no dia a dia – ocupação da pragmática, para citar um modelo teórico.

Um aspecto, entretanto, que mereceria mais atenção e que tem sido pouco explorado pela linguística, diz respeito às relações que se verificam entre linguagem e psicanálise. Em um pequeno livro da Série Princípios, organizada pela editora Ática, Eliane de Moura Castro procura abordar esse aspecto. Em Psicanálise e linguagem, a autora – que é professora no departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Geais – aborda o filão, mas de um viés que, embora possa contribuir com a linguística, não o faz com os mesmos olhos que seriam usados por algum cientista preocupado especificamente com a linguagem verbal.

No início do volume, Castro reporta-se com frequência à obra de Freud para mostrar como o uso da negação revela aspectos do inconsciente humano. Uma frase como: O senhor pergunta quem pode ser essa pessoa no sonho. Não é a minha mãe, dita por um paciente, pode revelar, na análise psicanalítica, o oposto do que indica a negação. Dessa forma, o não é a minha mãe, pode mostrar que, na verdade, era a ela que o analisado se referia.

Ainda seguindo os passos de pensamento freudiano, Eliana de Moura Castro destaca a importância do ato falho – a troca de uma palavra por outra - como índice de um fenômeno psíquico. Conforme suas palavras, nesse caso, uma determinada intenção consciente é perturbada por outra, não-consciente, provocando, por exemplo, um lapso de linguagem, de leitura ou um esquecimento.(MOURA, op.cit:10)

É do próprio Freud o exemplo: Um senhor que conversava com uma jovem sobre como Berlim estava bonita devido aos preparativos para a Páscoa, comentou: "Viu a loja Wertheim? Está toda decotada, oh, quis dizer decorada!". (apud: http://psicanalisenocotidiano.blogspot.com.br, consultado em 8/0/2014)/

O conceito de polissemia é outra associação feita entre a psicanálise e a linguística. Assim como na língua se verificam vários casos polissêmicos1, nos estudos da psicologia também ocorrem possibilidades de várias leituras de um mesmo fenômeno. A univocidade, dizem os especialistas da área, ainda que possa aparecer em determinados momentos logo é superada pela multiplicidade de interpretações. É o que ocorre com a análise dos sonhos, cuja leitura é, por natureza, multifacetada uma vez que aceita diversos novos pontos de vista.

Lacan que, como se sabe. fez uma releitura da obra de Freud, é igualmente citado pela autora por fazer referência ao papel da linguagem na vida humana. Para o cientista, o fato de fazer uso da linguagem é que possibilita a existência do homem no mundo. Apontando para a importância que ela possui também para a ciência psicanalítica, acrescenta: o inconsciente obedece a leis formais análogas às da lingüística (MOURA, op cit: 48).

Como se percebe, os analistas da psique humana ressaltam o quão fundamental é a linguagem na vida do homem e o quanto ela é, na mesma dimensão, fundamental para o desenvolvimento das tarefas do psicólogo ou do psicanalista.. Oferecem, portanto, um motivo a mais para que os linguistas dediquem-se com mais atenção ao exame de como atua a linguagem em relação às ciências que focalizam o comportamento humano .

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1  Considera-se polissêmica a palavra que, em determinada fase da língua,  possui mais de um sentido. Cabo, por exemplo, pode significar um acidente geográfico, parte de um objeto, patente militar

domingo, 24 de agosto de 2014

Mais algumas palavras sobre a Semântica da Enunciação

I Conforme já foi dito, podemos reconhecer dois tipos de informações implícitas: os pressupostos e os subentendidos. Sabe-se igualmente que a presença ou ausência de uma marca lingüística é o sinal convencionado para distinguir um fenômeno do outro: na pressuposição, um termo conduz a uma interpretação da frase, leitura não circunscrita àquela indicada na superfície; já no subentendido, esse termo não ocorre.
Ducrot emprega outras palavras para distinguir um e outro tipo de informação implícita Veja como ele encaminha a questão, na página 41 do livro O dizer e o dito (1987):  a pressuposição é parte integrante do sentido dos enunciados,ou seja, está inscrita neles; revela-se por meio de uma palavra; já o subentendido diz respeito à maneira pela qual esse sentido deve ser decifrado pelo destinatário, quer dizer, o que o enunciador diz poderá ser ou não devidamente entendido pelo enunciatário.

II  Leia outros casos que enfocam o estudo da pressuposição.
1.      Na frase, extraída do livro Lições de texto (Savioli / Fiorin) Cursei uma universidade mas aprendi muita coisa, o que está pressuposto? Que palavra conduz a essa interpretação?
2.      O que não pode ser pressuposto da frase seguinte: A casa continua abandonada. Por quê?

3.      Identifique o pressuposto da frase seguinte: Meu vizinho deixou de bater nos cachorros. A seguir, aplique sobre a mesma frase a negação e a interrogação. O pressuposto que ela encerra foi alterado? 
Pode-se concluir, então, que nem a interrogação nem a negação __________________________

4.      Reconheça os pressupostos expressos pelos termos grifados.
a.      Não vamos permitir que continuem ameaças prejudiciais a nossos trabalhos.
b.      Dizem que muitos de nossos políticos utilizam o dinheiro do contribuinte para financiar  constantes falcatruas.
c.      Por vezes somos forçados a tomar atitudes de que não gostamos.
d.      Será ele um bom professor?

5.       Identifique os pressupostos que existem nas duas formulações das frases.
a.      A juventude que é saudável gosta de se divertir.
b.      A juventude, que é saudável, gosta de se divertir.

III Como vimos, para Ducrot e Anscombre, as línguas naturais não têm um fim em si mesmas. Elas sequer servem para expressar o pensamento. Todavia são importantes porque criam um espaço para a interlocução: sempre falamos para o outro, na tentativa de persuadi-lo a pactuar com nossas opiniões. Assim, como queremos convencê-lo, podemos dizer que elas constituem, em essência, o lugar de troca de argumentos.  
Considerando esse aspecto pragmático da língua e não meramente sua estrutura, a Semântica da Enunciação acredita que um mesmo enunciado pode ser expresso em diferentes contextos e apresentar diferentes sentidos em cada um deles.
Por exemplo, uma frase como: Ana esqueceu o sal, pode significar, dependendo da situação em que foi emitida:
a.      que Ana é a cozinheira e esqueceu de colocar o sal na comida;
b.      que, em uma relação de produtos que deveriam ter sido comprados, fora marcado sal, que Ana não comprou.

IV O vínculo com situações concretas leva os estudiosos dessa linha a ser preocuparem com o exame de oposições do tipo pouco / um pouco que, embora sutis, apresentam sentidos diversos. Observe:  Tenho pouca fome. / Tenho um pouco de fome.
Analise ainda esse outro exemplo: Destruíram a escola da cidade. / Destruíram uma escola da cidade.
Tais fatores devem levar o estudioso de uma língua a considerar, ao lado dos fenômenos propriamente linguísticos, aqueles de natureza sociológica e psicológica que intervêm nos enunciados. Portanto, o que importa a Ducrot e seus seguidores não é o falante, mas as influências sociais e psíquicas existentes na mensagem. Para eles, PIS, a língua é apenas a parte superficial da comunicação.
Se se interessar por essa linha teórica, veja a página anterior deste blg, onde foram indicados dois títulos bibliográficos para consulta.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Pressupostos e subentendidos


          Oswald Ducrot  é um linguista francês nascido em 1932, ligado à Escola de Estudos Superiores em Ciências Sociais (École des Hautes Études en Sciences Sociales) de Paris. O que o vincula à linguística é o fato de ele ter desenvolvido, com Jean-Claude Anscombre, a Semântica da Enunciação, uma teoria pertencente às chamadas linguísticas enunciativas, ou seja, aquelas que não priorizam os estudos da língua por ela mesma, como fazem as abordagens tradicionais ou as que se agrupam em torno do estruturalismo.
        Para as linguísticas enunciativas, o que vale é focalizar a língua como forma de interlocução. Segundo Ducrot / Anscombre, a finalidade essencial do ato comunicativo é argumentar: os interlocutores se servem do código linguístico para expor sua visão de mundo, para buscar convencer o outro da justeza de suas posições.
           A fim de estudar esse papel da língua, o pesquisador deve considerar não apenas o posto, aquilo que se transmite pela superfície da linguagem, mas também o que está pressuposto e o que está subentendido.
               Pense em um contexto no qual se verifique um diálogo como:
                    L1: E a Ana? Como vai?
                    L2: Continua bonita!
o verbo continua faz pressupor que Ana sempre foi bonita. Entretanto, se substituirmos essa forma verbal por ficou, fazendo surgir Ana ficou bonita, somos levados a interpretar a frase como: “Ana não era bonita” ou “Ana não era nem feia nem bonita”.
            Conheça outros exemplos em que se trabalha com a pressuposição:
   a.    Artur deixou de beber.
   b.    Só falta João para a festa começar.
   c.    No fim de semana, o tempo permanecerá nublado.
           Repare que, em todos esses casos, há um elemento linguístico (continua, ficou, deixou, só falta, permanecerá) que desencadeia uma interpretação que, mesmo não expressa no texto, é compreendida pelo interlocutor.
         Outro recurso não explícito de que o enunciador pode se servir para expor seu pensamento e, em última instância, defender suas idéias, é o do subentendido. Nesse caso, não se encontram marcas linguísticas que desencadeiam novas leituras. A compreensão da mensagem se processa graças a um conhecimento de mundo partilhado entre enunciador e enunciatário. Por isso dizemos que os subentendidos sempre revelam os valores de uma determinada sociedade.
         Veja: suponha um pai que conversa com o filho de baixo rendimento escolar. Quando ele diz: Que beleza! O Fernandinho passou de ano sem ter de fazer exames! sem dúvida está insinuando que o outro aproveita adequadamente os ensinamentos desenvolvidos pela escola, o que não ocorre com seu filho.
        Fato semelhante acontece quando uma pessoa, ao entrar em uma sala, exclama: Que calor! Se as janelas do lugar estiverem fechadas, é natural que alguém se prontifique a abri-las, evitando assim que observações do tipo se repitam. O pedido, entretanto, não foi explicitado.
          Os subentendidos revelam, como já foi dito, visões de mundo de um determinado grupo da sociedade. Quando alguém diz, por exemplo, à semelhança de Luís Fernando Veríssimo: Espero que você se case e seja feliz...que dizer: uma coisa ou outra, está refletindo uma visão social – bem humorada, mas negativa - do casamento. Tal concepção não está presente na frase, mas quem participa do ato enunciativo onde ela foi pronunciada certamente compreenderá o que o falante está insinuando.
        Portanto, ao estudioso da semântica da enunciação, não interessa apenas o que está explícito, posto no enunciado do usuário da língua, mas também – e sobretudo - o que está pressuposto e subentendido, ou seja, o que está implícito.
       As idéias de Ducrot acerca do assunto podem ser conhecidas em O dizer e o dito, publicação da editora Pontes, Campinas, em 1987. Para uma abordagem mais acessível que a do lingüista francês, mas mais completa do que a exposta nesta página, ver Para entender o texto:leitura e redação de Platão e Fiorin (São Paulo: Ática. 2008).

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

A Questão do Signo na Antiguidade Clássica


Quem está familiarizado com a literatura produzida na área da linguística sabe o quanto se faz referência ao conceito de signo, associando-o, sobretudo, à matriz saussureana.1

Discussões sobre o signo, entretanto, remontam a longa data. Winfried Nöth, (professor de linguística e semiótica da Universidade de Kassel, Alemanha) em seu livro Panorama da semiótica. De Platão a Peirce (São Paulo: Annablume. 1998) faz referência a posições da cultura mesopotâmica - que floresceu 4 mil anos a.C – acerca do signo.

Segundo Nöth, os povos da Mesopotâmia acreditavam que os signos carregam mistérios, indicavam presságios, passíveis de serem interpretados pelos oráculos. Embora os gregos tivessem acrescentado vieses diferentes ao estudo do signo, Nöth acredita que, em termos, é possível identificar semelhanças entre o pensamento dos dois povos uma vez que os gregos também viram no signo algo escondido, oculto, que não poderia ser desvendado.

É o caso de Platão, que formulou uma teoria dos signos. Para o filósofo, os signos linguísticos – ou seja, as palavras - não chegam à natureza das coisas. Ao contrário, constituem apenas uma representação incompleta delas. Dessa forma, estudar a palavra não revela nada sobre a natureza dos seres, que se mantém insondável.

Esse raciocínio levanta a discussão, também secular, acerca das relações entre os signos e as coisas que eles representam: seriam essas relações convencionais ou naturais?

A tese de Platão indica a escolha pela arbitrariedade, ou seja, as palavras não possuem relação lógica com os objetos que elas nomeiam. Assim, o termo floresta, por exemplo, não passaria de uma convenção aceita por povos lusófonos para denominar um conjunto de árvores. Não haveria uma motivação natural para o uso da palavra.

A mesma posição sobre a natureza convencional do signo linguístico será defendida, na Antiguidade clássica, por Aristóteles.

Outra questão que se coloca aos interessados no assunto diz respeito à constituição do signo e, nesse quesito, os pontos de vista foram divergentes na época.2

Platão, por exemplo, possuía uma visão triádica do signo. Conforme seu pensamento, o signo seria composto por três elementos: o nome (ou ónoma), a ideia (ou lógos) e a coisa à qual ele se refere (prágma).

Assim como Platão, Aristóteles – que procurou abordar a teoria dos signos do ponto de vista da lógica e da retórica - também possuía uma concepção triádica do signo que, em seus escritos era designado por símbolo.

Entre os estóicos,3  mantém-se a visão. Para essa corrente, distinguem-se no signo: um significante, um significado (ou significação) e um objeto, ao qual o signo se refere.

Já entre os epicuristas, a concepção que prevaleceu foi a diádica.  Para eles, o signo seria composto por um significante e por um objeto. O significado, elemento imaterial, não é reconhecido como um componente estrutural.

A questão do signo, mesmo circunscrito ao pensamento grego, oferece uma série de matizes que podem interessar aos curiosos pelo tema. Nesse caso, é oportuna a leitura do livro de Nöth, citado acima. O autor oferece um panorama sobre o assunto, mas oferece indicações de aprofundamento na área.

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1 O signo é, assim como o ícone e o símbolo, um tipo de sinal, instrumento imprescindível à comunicação humana. Segundo Saussure, um dos traços que caracteriza o signo lingüístico – união de um conceito e uma imagem acústica - é o fato de ele ser arbitrário, aspecto polêmico entre os pesquisadores da área.

2 As divergências acerca da constituição dos signos se mantêm até hoje. Se nos ativermos apenas às posições de maior destaque, veremos que, para o pensamento de Saussure (1867 – 1913), o signo é diádico; para Peirce (1839-1914), é triádico. Na concepção diádica sausurreana, o signo é composto por um conceito e uma imagem acústica apenas; na peirceana, distinguem-se um representamem, um objeto e um interpretante.

3 Assim como em Aristóteles, entre os estóicos desenvolveu-se uma concepção segundo a qual o signo é fruto de um processo lógico, em que uma premissa conduz a um consequente, ou seja, a uma conclusão.
Isabelle Kock apresenta um aprofundamento sobre a concepção dos signos entre os estoicos, no artigo “Explicação Causal e Interpretação dos Signos segundo os Estoicos”, publicado em www.unicamp.br/cadernos. Professora da Universidade de Provence (Aix-Marseille I), o trabalho de Kock foi traduzido por Wladimir Barreto Lisboa.