domingo, 24 de agosto de 2014

Mais algumas palavras sobre a Semântica da Enunciação

I Conforme já foi dito, podemos reconhecer dois tipos de informações implícitas: os pressupostos e os subentendidos. Sabe-se igualmente que a presença ou ausência de uma marca lingüística é o sinal convencionado para distinguir um fenômeno do outro: na pressuposição, um termo conduz a uma interpretação da frase, leitura não circunscrita àquela indicada na superfície; já no subentendido, esse termo não ocorre.
Ducrot emprega outras palavras para distinguir um e outro tipo de informação implícita Veja como ele encaminha a questão, na página 41 do livro O dizer e o dito (1987):  a pressuposição é parte integrante do sentido dos enunciados,ou seja, está inscrita neles; revela-se por meio de uma palavra; já o subentendido diz respeito à maneira pela qual esse sentido deve ser decifrado pelo destinatário, quer dizer, o que o enunciador diz poderá ser ou não devidamente entendido pelo enunciatário.

II  Leia outros casos que enfocam o estudo da pressuposição.
1.      Na frase, extraída do livro Lições de texto (Savioli / Fiorin) Cursei uma universidade mas aprendi muita coisa, o que está pressuposto? Que palavra conduz a essa interpretação?
2.      O que não pode ser pressuposto da frase seguinte: A casa continua abandonada. Por quê?

3.      Identifique o pressuposto da frase seguinte: Meu vizinho deixou de bater nos cachorros. A seguir, aplique sobre a mesma frase a negação e a interrogação. O pressuposto que ela encerra foi alterado? 
Pode-se concluir, então, que nem a interrogação nem a negação __________________________

4.      Reconheça os pressupostos expressos pelos termos grifados.
a.      Não vamos permitir que continuem ameaças prejudiciais a nossos trabalhos.
b.      Dizem que muitos de nossos políticos utilizam o dinheiro do contribuinte para financiar  constantes falcatruas.
c.      Por vezes somos forçados a tomar atitudes de que não gostamos.
d.      Será ele um bom professor?

5.       Identifique os pressupostos que existem nas duas formulações das frases.
a.      A juventude que é saudável gosta de se divertir.
b.      A juventude, que é saudável, gosta de se divertir.

III Como vimos, para Ducrot e Anscombre, as línguas naturais não têm um fim em si mesmas. Elas sequer servem para expressar o pensamento. Todavia são importantes porque criam um espaço para a interlocução: sempre falamos para o outro, na tentativa de persuadi-lo a pactuar com nossas opiniões. Assim, como queremos convencê-lo, podemos dizer que elas constituem, em essência, o lugar de troca de argumentos.  
Considerando esse aspecto pragmático da língua e não meramente sua estrutura, a Semântica da Enunciação acredita que um mesmo enunciado pode ser expresso em diferentes contextos e apresentar diferentes sentidos em cada um deles.
Por exemplo, uma frase como: Ana esqueceu o sal, pode significar, dependendo da situação em que foi emitida:
a.      que Ana é a cozinheira e esqueceu de colocar o sal na comida;
b.      que, em uma relação de produtos que deveriam ter sido comprados, fora marcado sal, que Ana não comprou.

IV O vínculo com situações concretas leva os estudiosos dessa linha a ser preocuparem com o exame de oposições do tipo pouco / um pouco que, embora sutis, apresentam sentidos diversos. Observe:  Tenho pouca fome. / Tenho um pouco de fome.
Analise ainda esse outro exemplo: Destruíram a escola da cidade. / Destruíram uma escola da cidade.
Tais fatores devem levar o estudioso de uma língua a considerar, ao lado dos fenômenos propriamente linguísticos, aqueles de natureza sociológica e psicológica que intervêm nos enunciados. Portanto, o que importa a Ducrot e seus seguidores não é o falante, mas as influências sociais e psíquicas existentes na mensagem. Para eles, PIS, a língua é apenas a parte superficial da comunicação.
Se se interessar por essa linha teórica, veja a página anterior deste blg, onde foram indicados dois títulos bibliográficos para consulta.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Pressupostos e subentendidos


          Oswald Ducrot  é um linguista francês nascido em 1932, ligado à Escola de Estudos Superiores em Ciências Sociais (École des Hautes Études en Sciences Sociales) de Paris. O que o vincula à linguística é o fato de ele ter desenvolvido, com Jean-Claude Anscombre, a Semântica da Enunciação, uma teoria pertencente às chamadas linguísticas enunciativas, ou seja, aquelas que não priorizam os estudos da língua por ela mesma, como fazem as abordagens tradicionais ou as que se agrupam em torno do estruturalismo.
        Para as linguísticas enunciativas, o que vale é focalizar a língua como forma de interlocução. Segundo Ducrot / Anscombre, a finalidade essencial do ato comunicativo é argumentar: os interlocutores se servem do código linguístico para expor sua visão de mundo, para buscar convencer o outro da justeza de suas posições.
           A fim de estudar esse papel da língua, o pesquisador deve considerar não apenas o posto, aquilo que se transmite pela superfície da linguagem, mas também o que está pressuposto e o que está subentendido.
               Pense em um contexto no qual se verifique um diálogo como:
                    L1: E a Ana? Como vai?
                    L2: Continua bonita!
o verbo continua faz pressupor que Ana sempre foi bonita. Entretanto, se substituirmos essa forma verbal por ficou, fazendo surgir Ana ficou bonita, somos levados a interpretar a frase como: “Ana não era bonita” ou “Ana não era nem feia nem bonita”.
            Conheça outros exemplos em que se trabalha com a pressuposição:
   a.    Artur deixou de beber.
   b.    Só falta João para a festa começar.
   c.    No fim de semana, o tempo permanecerá nublado.
           Repare que, em todos esses casos, há um elemento linguístico (continua, ficou, deixou, só falta, permanecerá) que desencadeia uma interpretação que, mesmo não expressa no texto, é compreendida pelo interlocutor.
         Outro recurso não explícito de que o enunciador pode se servir para expor seu pensamento e, em última instância, defender suas idéias, é o do subentendido. Nesse caso, não se encontram marcas linguísticas que desencadeiam novas leituras. A compreensão da mensagem se processa graças a um conhecimento de mundo partilhado entre enunciador e enunciatário. Por isso dizemos que os subentendidos sempre revelam os valores de uma determinada sociedade.
         Veja: suponha um pai que conversa com o filho de baixo rendimento escolar. Quando ele diz: Que beleza! O Fernandinho passou de ano sem ter de fazer exames! sem dúvida está insinuando que o outro aproveita adequadamente os ensinamentos desenvolvidos pela escola, o que não ocorre com seu filho.
        Fato semelhante acontece quando uma pessoa, ao entrar em uma sala, exclama: Que calor! Se as janelas do lugar estiverem fechadas, é natural que alguém se prontifique a abri-las, evitando assim que observações do tipo se repitam. O pedido, entretanto, não foi explicitado.
          Os subentendidos revelam, como já foi dito, visões de mundo de um determinado grupo da sociedade. Quando alguém diz, por exemplo, à semelhança de Luís Fernando Veríssimo: Espero que você se case e seja feliz...que dizer: uma coisa ou outra, está refletindo uma visão social – bem humorada, mas negativa - do casamento. Tal concepção não está presente na frase, mas quem participa do ato enunciativo onde ela foi pronunciada certamente compreenderá o que o falante está insinuando.
        Portanto, ao estudioso da semântica da enunciação, não interessa apenas o que está explícito, posto no enunciado do usuário da língua, mas também – e sobretudo - o que está pressuposto e subentendido, ou seja, o que está implícito.
       As idéias de Ducrot acerca do assunto podem ser conhecidas em O dizer e o dito, publicação da editora Pontes, Campinas, em 1987. Para uma abordagem mais acessível que a do lingüista francês, mas mais completa do que a exposta nesta página, ver Para entender o texto:leitura e redação de Platão e Fiorin (São Paulo: Ática. 2008).

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

A Questão do Signo na Antiguidade Clássica


Quem está familiarizado com a literatura produzida na área da linguística sabe o quanto se faz referência ao conceito de signo, associando-o, sobretudo, à matriz saussureana.1

Discussões sobre o signo, entretanto, remontam a longa data. Winfried Nöth, (professor de linguística e semiótica da Universidade de Kassel, Alemanha) em seu livro Panorama da semiótica. De Platão a Peirce (São Paulo: Annablume. 1998) faz referência a posições da cultura mesopotâmica - que floresceu 4 mil anos a.C – acerca do signo.

Segundo Nöth, os povos da Mesopotâmia acreditavam que os signos carregam mistérios, indicavam presságios, passíveis de serem interpretados pelos oráculos. Embora os gregos tivessem acrescentado vieses diferentes ao estudo do signo, Nöth acredita que, em termos, é possível identificar semelhanças entre o pensamento dos dois povos uma vez que os gregos também viram no signo algo escondido, oculto, que não poderia ser desvendado.

É o caso de Platão, que formulou uma teoria dos signos. Para o filósofo, os signos linguísticos – ou seja, as palavras - não chegam à natureza das coisas. Ao contrário, constituem apenas uma representação incompleta delas. Dessa forma, estudar a palavra não revela nada sobre a natureza dos seres, que se mantém insondável.

Esse raciocínio levanta a discussão, também secular, acerca das relações entre os signos e as coisas que eles representam: seriam essas relações convencionais ou naturais?

A tese de Platão indica a escolha pela arbitrariedade, ou seja, as palavras não possuem relação lógica com os objetos que elas nomeiam. Assim, o termo floresta, por exemplo, não passaria de uma convenção aceita por povos lusófonos para denominar um conjunto de árvores. Não haveria uma motivação natural para o uso da palavra.

A mesma posição sobre a natureza convencional do signo linguístico será defendida, na Antiguidade clássica, por Aristóteles.

Outra questão que se coloca aos interessados no assunto diz respeito à constituição do signo e, nesse quesito, os pontos de vista foram divergentes na época.2

Platão, por exemplo, possuía uma visão triádica do signo. Conforme seu pensamento, o signo seria composto por três elementos: o nome (ou ónoma), a ideia (ou lógos) e a coisa à qual ele se refere (prágma).

Assim como Platão, Aristóteles – que procurou abordar a teoria dos signos do ponto de vista da lógica e da retórica - também possuía uma concepção triádica do signo que, em seus escritos era designado por símbolo.

Entre os estóicos,3  mantém-se a visão. Para essa corrente, distinguem-se no signo: um significante, um significado (ou significação) e um objeto, ao qual o signo se refere.

Já entre os epicuristas, a concepção que prevaleceu foi a diádica.  Para eles, o signo seria composto por um significante e por um objeto. O significado, elemento imaterial, não é reconhecido como um componente estrutural.

A questão do signo, mesmo circunscrito ao pensamento grego, oferece uma série de matizes que podem interessar aos curiosos pelo tema. Nesse caso, é oportuna a leitura do livro de Nöth, citado acima. O autor oferece um panorama sobre o assunto, mas oferece indicações de aprofundamento na área.

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1 O signo é, assim como o ícone e o símbolo, um tipo de sinal, instrumento imprescindível à comunicação humana. Segundo Saussure, um dos traços que caracteriza o signo lingüístico – união de um conceito e uma imagem acústica - é o fato de ele ser arbitrário, aspecto polêmico entre os pesquisadores da área.

2 As divergências acerca da constituição dos signos se mantêm até hoje. Se nos ativermos apenas às posições de maior destaque, veremos que, para o pensamento de Saussure (1867 – 1913), o signo é diádico; para Peirce (1839-1914), é triádico. Na concepção diádica sausurreana, o signo é composto por um conceito e uma imagem acústica apenas; na peirceana, distinguem-se um representamem, um objeto e um interpretante.

3 Assim como em Aristóteles, entre os estóicos desenvolveu-se uma concepção segundo a qual o signo é fruto de um processo lógico, em que uma premissa conduz a um consequente, ou seja, a uma conclusão.
Isabelle Kock apresenta um aprofundamento sobre a concepção dos signos entre os estoicos, no artigo “Explicação Causal e Interpretação dos Signos segundo os Estoicos”, publicado em www.unicamp.br/cadernos. Professora da Universidade de Provence (Aix-Marseille I), o trabalho de Kock foi traduzido por Wladimir Barreto Lisboa.








terça-feira, 12 de agosto de 2014

Falas masculinas / falas femininas



O objeto de estudo da sociolinguística é amplo e variado. Como são inúmeras as células sociais, muitos fenômenos podem ser observados: a fala dos garis, dos pescadores, dos médicos, de estudantes de escolas públicas, de crianças de classes médias entre vários outros.

Um aspecto que no Brasil não tem sido muito analisado, mas que pode levar a conclusões curiosas é a diferença existente entre a fala dos homens e a das mulheres.

Para que se possa ter uma ideia do desapreço que os brasileiros têm pelo tema, basta observar as referências bibliográficas de um pequeno livro publicado pela editora Ática (série “Princípios”): o Linguagem e sexo. Trata-se de um rápido estudo de Malcolm Coulthard – um professor inglês dedicado ao estudo da linguística forense – sobre o assunto. Ainda que o livro se limite a tangenciar as questões das falas masculinas e femininas, a bibliografia é bastante diversificada. No entanto, entre os vários títulos citados pelo autor, as fontes em língua portuguesa se limitam a duas ou três, provando que muito há a ser feito, na área, pelos pesquisadores brasileiros.

O campo de estudo, entretanto, pode ser mais explorado mesmo em países que conferem, à pesquisa, uma importância maior que o nosso. Segundo Coulthard, faltam pesquisas que se dediquem, por exemplo, a verificar quais os meios verbais e os não verbais que homossexuais e travestis usam para marcar sua “feminilidade”. (1991:16)

E conclui:
Infelizmente ainda não existe uma pesquisa sólida nessa área, embora Sally McConnell-Ginet se refira ao fato de que nos Estados Unidos “transexuais procurem treinamento em linguagem feminina”.

Na verdade, os trabalhos publicados sobre o assunto merecem uma releitura, pois é preciso admitir que a posição social da mulher se alterou significativamente nas últimas décadas e que escolhas temáticas e lexicais que antes definiam com precisão a presença de um homem ou de uma mulher nos diálogos hoje se encontram alteradas.

Pesquisas realizadas em meados do século passado, por exemplo, mostravam que as conversas femininas giravam em torno das preocupações referentes a seu universo de então: filhos, marido, enfim, vida doméstica. O vocabulário empregado evitava os termos chulos, pesados, na época, circunscritos às manifestações masculinas.

Nora Galli de’ Paratesi desenvolveu, na década de 60, um trabalho em que, ao examinar as relações entre as mulheres e a linguagem utilizada, constatou a forte presença de eufemismos, figura de linguagem cuja função é, como se sabe, atenuar as ideias expressas. Entretanto, ao abordar novamente o assunto em um capítulo do livro Falas masculinas, falas femininas? Sexo e linguagem (editora Brasiliense), publicado em 1991, reconheceu que suas observações deveriam ser repensadas, pois dificilmente um autor terá assistido a uma mudança tão radical num lapso de tempo tão curto (op.cit.: 63). O novo panorama a forçou, após o exíguo período de quinze anos, a reconsiderar praticamente tudo que havia escrito (id.ibid.) até então.

As alterações ocorridas nos países ocidentais nas últimas décadas mudaram a posição da mulher no que diz respeito a seu lugar no mundo e à linguagem que ela emprega para se comunicar. Assim, se as gírias ou os chamados “palavrões” há alguns anos inexistiam nas falas femininas, hoje eles são tão frequentes quanto nas falas masculinas.

Não obstante essa evidência, estudos da área parecem ser unânimes em mostrar (Coulthard, op cit.: 45) que ainda se constatam distinções entre as duas formas de falar. Ao exemplificar sua posição, o autor indica que a linguagem dos homens e dos meninos se afasta mais da linguagem padrão do que aquela empregada pelas mulheres e meninas. Coulthard faz referência às conclusões de um estudo realizado em Reading, Inglaterra, segundo as quais

as meninas “más”, aquelas cujo comportamento era mais parecido com o dos meninos, tinham uma gramática não padrão mais próxima à dos meninos do que a das “boas”meninas.

Constata-se, portanto, que as diferenças entre as falas masculinas e femininas não se limita à altura da voz1 – mais alta nas mulheres; mais baixa nos homens – mas abrange muitas outras variáveis, que englobam a fonologia, os tópicos selecionados para as conversas, o estilo na interação conversacional, assuntos à espera de novos estudos que ratifiquem ou que alterem as parcas conclusões já existentes sobre o tema  no Brasil.

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1  A diferença na altura das vozes dos homens e das mulheres está associada à frequência, uma grandeza física. A noção de frequência, na fala, relaciona-se ao número de vezes em que as cordas vocais vibram por segundo e ao comprimento dessas cordas: quanto mais curtas, mais rapidamente elas vibram e mais alta é a altura percebida. Como as cordas vocais femininas são mais curtas que as masculinas, vibram mais rapidamente, produzindo sons mais altos. Evidentemente o inverso ocorre com a fala masculina.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

A pesquisa sociolinguística




Embora muitos cometam o engano, a pesquisa sociolinguística não é uma atividade simples de ser executada. Um trabalho desse gênero, se se pretende bem feito, requer muitos passos e cuidados.
Inicialmente, é preciso ter em mente que existe uma relação entre língua e sociedade, pois o desempenho linguístico não está dissociado da pessoa que fala, da pessoa com quem ela fala; do momento que vive nem lugar em que está. Esses fatores fazem com que o objeto de estudo da pesquisa, isto é, as relações língua e sociedade, seja bastante heterogêneo. Aparentemente caótico, ele precisa ser sistematizado, o que requer atenção e seriedade de trabalho.

Outro problema que se coloca é a delimitação do campo de pesquisa, ou seja, a escolha da célula social a ser analisada já que é impossível, de uma só vez, examinar a fala de toda uma sociedade.

Aspecto mais delicado é a seleção do informante. Quando o objetivo é determinar as características da fala de uma comunidade primitiva, pouco exposta às mudanças do mundo moderno. por exemplo, o cuidado deve ser maior, porque, nesse caso, o informante deve ter nascido na região, não pode ter se ausentado dela por muito tempo nem tido muito contato com pessoas de outras comunidades, capazes de alterar sua forma de expressão.

Recolher os dados requer, igualmente, cuidados especiais. Recomenda-se que o pesquisador deixe o informante à vontade e não lhe diga, de início, que a conversa visa a estudar sua fala. Tal declaração poderia despertar a desconfiança de que seriam apontados “erros” de língua, e o pesquisado, diante dessa hipótese, se esforçaria para adequar sua fala ao padrão culto da língua, falseando dessa forma os dados a serem recolhidos.1

Os estudiosos recomendam que, para fazer com que o entrevistado se sinta à vontade, seja-lhe solicitada a narrativa de alguma experiência pessoal. Assim, preocupado em ser fiel a sua memória, será mais difícil que ele não se esforce por aclimatar sua forma de expressão àquela usada pelo pesquisador ou por alguém escolarizado.

Esses cuidados fazem com que o observador viva, com freqüência, uma situação paradoxal: ele precisa participar da comunidade para coletar o maior número possível de dados mas, ao mesmo tempo, não pode perturbar a naturalidade do encontro.

Feito o recolhimento dos dados, o pesquisador deverá descrever  cuidadosamente a variável em exame para que ela possa ser inserida em pesquisas de caráter mais amplo, interessadas, por exemplo, em construir o mapa linguístico de uma região.

Nos trabalhos mais complexos, há outras tarefas a serem cumpridas, como elaborar envelopes de variação – de que devem constar descrições das variantes estudadas -, identificar os fatores linguísticos e não linguísticos 2 que agem sobre as variantes, projetar as transformações que, em uma dimensão histórica, podem ocorrer sobre uma fala entre outras.

Se houver interesse em obter mais informações sobre o assunto, recomenda-se a leitura de um pequeno livro de Fernando Tarallo, A pesquisa sociolinguística, que faz parte da série “Princípios”, organizada pela editora Ática.

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1 Na verdade, o padrão culto da língua é a variante que menos interessa à pesquisa sociolinguística devido a seu caráter homogêneo. Por ser a norma oficial, a empregada na comunicação de todo o país, ela não apresenta as particularidades que as demais variantes oferecem.
Como exemplo de um fator linguístico que pode influenciar uma variante, podemos citar a pronúncia do /l/ em final de sílaba: em alguns contextos, o fonema é emitido como consoante, caso do Rio Grande do Sul; em outros, ele é articulado como a semivogal /w/, o que ocorre em São Paulo.  
Escolarização, idade, sexo podem ser citados como fatores não linguísticos capazes de agir sobre a fala de um indivíduo.




segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Abrindo uma trilha para a semiótica greimasiana





Assim como ocorre com as outras ciências, a semiótica apresenta várias correntes de pensamento. Em seu livro Teoria Semiótica do Texto (2000), publicado pela editora Ática, Diana Luz P. de Barros refere-se a apenas  três delas: à encabeçada pelo norte-americano Charles Sanders Peirce; à criada pelo lingüista lituano de origem russa, Julian Algirdas Griemas, e à difundida pela  Escola de Tartu, na Estônia, fundada por  Yuri Mikhailovich Lotman, um semioticista que analisa as manifestações culturais humanas como um texto

O propósito de Barros é tratar da semiótica do texto, particularmente aquela proposta por Greimas. A seu ver, os estudos semióticos estão associados à semântica, que foi, durante a primeira metade do século passado, a parente pobre da lingüística (2000: 6). A autora menciona a semântica lexical ou estudo da palavra isolada e a semântica estrutural, que teve o mérito de propor o exame do sentido baseado em princípios e métodos, afastando-o de uma abordagem aleatória Lembra ainda que os estudos semânticos apenas alçaram voo quando se  romperam as barreiras entre a frase e o texto, passando-se a valorizar este último. Ou seja: a palavra ou a frase deixaram de ser consideradas unidades de sentido, cedendo espaço para o estudo do texto.

O objetivo da semiótica greimasiana é, então, descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz. Por exemplo, a leitura da poesia transcrita abaixo - História de uma gata leva à conclusão de que se destaca ali o contraste entre liberdade e opressão. Cabe à semiótica, de acordo com Greimas, descobrir quais recursos foram empregados pelo autor para que os leitores chegassem a essa conclusão.

Ao tratar do modo como podem ser estudados os textos, Barros assinala que o pesquisador tem a possibilidade de vê-los como um objeto de significação e como um objeto de comunicação.  No primeiro caso, é feita sua análise interna ou estrutural, quer dizer, é focalizado o modo como ele se organiza. No segundo, o texto é concebido como um objeto cultural, inserido em uma sociedade diversificada e influenciado por determinadas formações ideológicas. Deve, pois, ser examinado  em relação ao contexto sócio-histórico que o produz.

É importante lembrar que qualquer texto – verbal ou não-verbal - é objeto de estudo da semiótica. Seguindo as idéias do lingüista dinamarquês Louis Hjelmslev, os semioticistas devem abstrair as diferenças da expressão, que seria a parte superficial dos textos, e deter-se apenas no plano do conteúdo.

Para analisar uma produção textual, a semiótica greimasiana constrói um percurso gerativo do sentido que parte do nível mais simples e abstrato e chega ao mais complexo. Esse é o nível fundamental, onde se verifica uma oposição semântica mínima; No exemplo citado: liberdade x opressão. Mas, em outros textos, poderia ser natureza x cultura ou vida x morte.

Em um segundo patamar, verifica-se o nível das estruturas narrativas. Nele se instalam sujeitos e objetos que se relacionam entre si, indicando estados de conjunção ou de disjunção. No poema abaixo, aparece inicialmente um sujeito - a gata - ligada à opressão e afastada da liberdade. Essas relações se alteram, entretanto, à medida que a trama se desenrola e o sujeito gata – afasta-se da opressão para, seguindo seus amigos gatos, ligar-se à liberdade.

O terceiro nível é o do discurso ou das estruturas discursivas, quando se revelam os modos como são concretizadas as situações latentes no texto, a maneira como se estabelecem os vínculos entre o enunciador e aquele que recebe a enunciação, ou seja, o enunciatário.

A fim de concretizar os princípios da teoria semiotica greimasiana, Barros analisa uma série de textos. O primeiro deles enfoca um excerto de Os saltinbancos.


História de uma gata

Me alimentaram
me acariciaram
me aliciaram
me acostumaram.
O meu mundo era o apartamento.
Detefon, almofada e trato
todo dia filé-mignon
ou mesmo um bom filé de...gato.
me diziam, todo momento:
Fique em casa, não tome vento.
Mas é duro ficar na sua
quando à luz da lua
tantos gatos pela rua
toda noite vão cantando assim:
Nós, gatos, já nascemos pobres
porém, já nascemos livres.
Senhor, senhora, senhorio,
Felino, não reconhecerás.
De manhã eu voltei pra casa
fui barrada na portaria,
sem filé nem almofada
por causa da cantoria.
Mas agora o meu dia a dia
é no meio da gataria
pela rua virando lata
eu sou mais eu, gata
numa louca serenata
que de noite sai cantando assim:
Nós, gatos, já nascemos pobres
porém, já nascemos livres.
Senhor, senhora, senhorio,
Felino, não reconhecerás.

Luiz Henríquez, Sérgio Bardotti e Chico Buarque de Hollanda.


Conforme ficou registrado acima, ali se verificam, como oposição fundamental, os valores liberdade x dominação, sendo que à liberdade atribui-se uma conotação positiva –eufórica – enquanto à opressão, u valor  negativo - disfórico).

Nas estruturas narrativas, instala-se o sujeito gata, manipulada por outro sujeito, o dono. Essa manipulação ocorre por meio de uma tentação, pois lhe é oferecida casa, proteção, carinho, o que a faz feliz. No decorrer da história, entretanto, aparecem outros sujeitos, com novos valores, que também a tentam. Ela rompe então o acordo com o dono e firma outro contrato com seus novos amigos.

No terceiro nível, o das estruturas discursivas, deve-se proceder a uma análise do modo como o percurso mostrado até então se concretiza. Observa-se, por exemplo, que o pronome empregado é o de primeira pessoa – eu – o que confere ao texto, um efeito de subjetividade.
           
Os dados apresentados aqui são extremamente sintáticos. Para aprofundamento do assunto, recomenda-se a leitura do livro citado, que poder ser complementada pelo escrito por José Luiz Fiorin: Elementos de Análise do Discurso e publicado pela editora Contexto.