domingo, 13 de julho de 2014

Preconceito linguístico I. A escolha do grafema.



A escolha de escrita a ser usada por um determinado povo está relacionada a suas crenças e a sua história. Enfim, empregar a escrita alfabética ou a não alfabética é uma opção, que está vinculada à cultura de um povo. Entretanto,  essa afirmativa, que pode ser consensual hoje em dia, nem sempre o foi durante os séculos.

Vimos, no texto anterior, que os gregos, a partir de uma colaboração dos fenícios, transformaram a escrita silábica em alfabética. Até o século XVII, os outros europeus, influenciados pelo pensamento grego, faziam uso desse tipo de grafia servindo-se, sobretudo, do sistema árabe ou hebraico em seus registros.

Mesmo conhecedores que eram de outras formas de escrita – caso dos hieróglifos ou do sistema pictográfico dos indígenas, como as astecas e maias – a Europa manteve o hábito de se comunicar por meio da escrita alfabética.

Todavia, o poderio da China se projetava no mundo de então e o conhecimento de sua estranha escrita abalou as convicções europeias que, respeitando o espectro da nova potência, passaram a considerar sua escrita como racional e a conferir-lhe posição privilegiada  Leibnitz, o conhecido filósofo alemão, partilhava dessa ideia.

O mundo se alterava, entretanto e, na segunda metade do século XVIII, os pontos de vista sobre a escrita apresentaram outra configuração. A alfabética voltou a ser tida como a melhor forma de escrever. Consequentemente, a escrita chinesa se desvalorizou e começou a ser taxada de rudimentar.

Maurizio Gnerre, em Linguagem, escrita e poder, (São Paulo: Martins Fontes, 1993) se refere a uma obra de Boswell de a791 (Life of Samuel Johnson.) para registrar o tipo de pensamento que vigorava na época. Quando uma das personagens argumenta que a língua dos chineses possuía mais sabedoria do que qualquer outra porque dispunha de grande número de caracteres, a personagem central do livro contra-argumentou que ela, na verdade, era:

... somente mais difícil devido a sua rudimentaridade: assim como é mais trabalhoso cortar uma árvore com uma pedra que com um machado. (GNERRE: 1993, 83)


No século XIX, essa visão preconceituosa se acentuou. Na época, Europa e China viviam um confronto e a influência da Europa era mais ampla. Comentando as relações de força entre os países, muitos autores afirmavam que se localizava na escrita a causa da “inferioridade” chinesa.

A decodificação dos hieróglifos por Champollion, no mesmo século, alimentou o raciocínio canhestro, ao trazer à baila um fato histórico: Alexandre, o Magno, reinava na Macedônia no século IV a.C. Ele tivera uma educação helênica, que admirava e cujas orientações acatava, incluindo-se o sistema alfabético de escrita. A vitória que obteve sobre os egípcios, povo de escrita ideográfica, provava, segundo os pensadores do momento, provava uma vez mais a superioridade da escrita alfabética sobre as outras. Dessa forma, o alfabeto passou a ser supervalorizado e, como decorrência, a cultura ocidental.

Nos inícios do século XX, mantinha-se a mesma visão  estreita. Pensadores, como o filósofo francês Émile Durkhein, sustentavam que os chineses eram povos primitivos o que se comprovava pela sua escrita. Esses raciocínios fieram com que até mesmo os chineses acabassem se convencendo de que a silábica era superior à sua forma de escrever e cogitaram substituir os caracteres de sua escrita pelas do alfabeto. Com o alinhamento do governo chinês à ideologia comunista, o sistema ideográfico passou a ser visto como próprio das classes dominantes e de seus intelectuais. Assim, em 1958, ele foi substituído por um sistema de transcrição baseado no alfabeto.

De acordo com as idéias de Foucault (apud GNERRE,op. cit: 67), a escrita alfabética representa não o significado mas os elementos fonéticos pelos quais nos expressamos. Já o ideograma representa diretamente o significado.

Para evitar distorções comprometedoras, é importante lembrar que as mudanças no modo de ver os símbolos da escrita estão relacionadas ao modo como pensaram os homens no decorrer dos estágios que constituem sua história.


Nenhum comentário:

Postar um comentário