segunda-feira, 8 de setembro de 2014

A linguagem nos estudos da psicanálise


Certamente é um truísmo lembrar o papel fundamental que a linguagem desempenha nas  sociedades humanas. Assim, não foi aleatória a afirmação de Bakhtin segundo a qual nossa vida se estrutura em torno de textos que se alinhavam uns aos outros formando um infindável tecido.É igualmente um truísmo dizer que, dentre todas as linguagens, a mais utilizada é a verbal.

Em decorrência dessas constatações, vários estudos se desenvolveram na área. Eles abrangem desde o exame da estrutura dos diversos códigos linguísticos – como se fez no estruturalismo, por exemplo - até o modo como esses códigos se utilizam no dia a dia – ocupação da pragmática, para citar um modelo teórico.

Um aspecto, entretanto, que mereceria mais atenção e que tem sido pouco explorado pela linguística, diz respeito às relações que se verificam entre linguagem e psicanálise. Em um pequeno livro da Série Princípios, organizada pela editora Ática, Eliane de Moura Castro procura abordar esse aspecto. Em Psicanálise e linguagem, a autora – que é professora no departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Geais – aborda o filão, mas de um viés que, embora possa contribuir com a linguística, não o faz com os mesmos olhos que seriam usados por algum cientista preocupado especificamente com a linguagem verbal.

No início do volume, Castro reporta-se com frequência à obra de Freud para mostrar como o uso da negação revela aspectos do inconsciente humano. Uma frase como: O senhor pergunta quem pode ser essa pessoa no sonho. Não é a minha mãe, dita por um paciente, pode revelar, na análise psicanalítica, o oposto do que indica a negação. Dessa forma, o não é a minha mãe, pode mostrar que, na verdade, era a ela que o analisado se referia.

Ainda seguindo os passos de pensamento freudiano, Eliana de Moura Castro destaca a importância do ato falho – a troca de uma palavra por outra - como índice de um fenômeno psíquico. Conforme suas palavras, nesse caso, uma determinada intenção consciente é perturbada por outra, não-consciente, provocando, por exemplo, um lapso de linguagem, de leitura ou um esquecimento.(MOURA, op.cit:10)

É do próprio Freud o exemplo: Um senhor que conversava com uma jovem sobre como Berlim estava bonita devido aos preparativos para a Páscoa, comentou: "Viu a loja Wertheim? Está toda decotada, oh, quis dizer decorada!". (apud: http://psicanalisenocotidiano.blogspot.com.br, consultado em 8/0/2014)/

O conceito de polissemia é outra associação feita entre a psicanálise e a linguística. Assim como na língua se verificam vários casos polissêmicos1, nos estudos da psicologia também ocorrem possibilidades de várias leituras de um mesmo fenômeno. A univocidade, dizem os especialistas da área, ainda que possa aparecer em determinados momentos logo é superada pela multiplicidade de interpretações. É o que ocorre com a análise dos sonhos, cuja leitura é, por natureza, multifacetada uma vez que aceita diversos novos pontos de vista.

Lacan que, como se sabe. fez uma releitura da obra de Freud, é igualmente citado pela autora por fazer referência ao papel da linguagem na vida humana. Para o cientista, o fato de fazer uso da linguagem é que possibilita a existência do homem no mundo. Apontando para a importância que ela possui também para a ciência psicanalítica, acrescenta: o inconsciente obedece a leis formais análogas às da lingüística (MOURA, op cit: 48).

Como se percebe, os analistas da psique humana ressaltam o quão fundamental é a linguagem na vida do homem e o quanto ela é, na mesma dimensão, fundamental para o desenvolvimento das tarefas do psicólogo ou do psicanalista.. Oferecem, portanto, um motivo a mais para que os linguistas dediquem-se com mais atenção ao exame de como atua a linguagem em relação às ciências que focalizam o comportamento humano .

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1  Considera-se polissêmica a palavra que, em determinada fase da língua,  possui mais de um sentido. Cabo, por exemplo, pode significar um acidente geográfico, parte de um objeto, patente militar

domingo, 24 de agosto de 2014

Mais algumas palavras sobre a Semântica da Enunciação

I Conforme já foi dito, podemos reconhecer dois tipos de informações implícitas: os pressupostos e os subentendidos. Sabe-se igualmente que a presença ou ausência de uma marca lingüística é o sinal convencionado para distinguir um fenômeno do outro: na pressuposição, um termo conduz a uma interpretação da frase, leitura não circunscrita àquela indicada na superfície; já no subentendido, esse termo não ocorre.
Ducrot emprega outras palavras para distinguir um e outro tipo de informação implícita Veja como ele encaminha a questão, na página 41 do livro O dizer e o dito (1987):  a pressuposição é parte integrante do sentido dos enunciados,ou seja, está inscrita neles; revela-se por meio de uma palavra; já o subentendido diz respeito à maneira pela qual esse sentido deve ser decifrado pelo destinatário, quer dizer, o que o enunciador diz poderá ser ou não devidamente entendido pelo enunciatário.

II  Leia outros casos que enfocam o estudo da pressuposição.
1.      Na frase, extraída do livro Lições de texto (Savioli / Fiorin) Cursei uma universidade mas aprendi muita coisa, o que está pressuposto? Que palavra conduz a essa interpretação?
2.      O que não pode ser pressuposto da frase seguinte: A casa continua abandonada. Por quê?

3.      Identifique o pressuposto da frase seguinte: Meu vizinho deixou de bater nos cachorros. A seguir, aplique sobre a mesma frase a negação e a interrogação. O pressuposto que ela encerra foi alterado? 
Pode-se concluir, então, que nem a interrogação nem a negação __________________________

4.      Reconheça os pressupostos expressos pelos termos grifados.
a.      Não vamos permitir que continuem ameaças prejudiciais a nossos trabalhos.
b.      Dizem que muitos de nossos políticos utilizam o dinheiro do contribuinte para financiar  constantes falcatruas.
c.      Por vezes somos forçados a tomar atitudes de que não gostamos.
d.      Será ele um bom professor?

5.       Identifique os pressupostos que existem nas duas formulações das frases.
a.      A juventude que é saudável gosta de se divertir.
b.      A juventude, que é saudável, gosta de se divertir.

III Como vimos, para Ducrot e Anscombre, as línguas naturais não têm um fim em si mesmas. Elas sequer servem para expressar o pensamento. Todavia são importantes porque criam um espaço para a interlocução: sempre falamos para o outro, na tentativa de persuadi-lo a pactuar com nossas opiniões. Assim, como queremos convencê-lo, podemos dizer que elas constituem, em essência, o lugar de troca de argumentos.  
Considerando esse aspecto pragmático da língua e não meramente sua estrutura, a Semântica da Enunciação acredita que um mesmo enunciado pode ser expresso em diferentes contextos e apresentar diferentes sentidos em cada um deles.
Por exemplo, uma frase como: Ana esqueceu o sal, pode significar, dependendo da situação em que foi emitida:
a.      que Ana é a cozinheira e esqueceu de colocar o sal na comida;
b.      que, em uma relação de produtos que deveriam ter sido comprados, fora marcado sal, que Ana não comprou.

IV O vínculo com situações concretas leva os estudiosos dessa linha a ser preocuparem com o exame de oposições do tipo pouco / um pouco que, embora sutis, apresentam sentidos diversos. Observe:  Tenho pouca fome. / Tenho um pouco de fome.
Analise ainda esse outro exemplo: Destruíram a escola da cidade. / Destruíram uma escola da cidade.
Tais fatores devem levar o estudioso de uma língua a considerar, ao lado dos fenômenos propriamente linguísticos, aqueles de natureza sociológica e psicológica que intervêm nos enunciados. Portanto, o que importa a Ducrot e seus seguidores não é o falante, mas as influências sociais e psíquicas existentes na mensagem. Para eles, PIS, a língua é apenas a parte superficial da comunicação.
Se se interessar por essa linha teórica, veja a página anterior deste blg, onde foram indicados dois títulos bibliográficos para consulta.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Pressupostos e subentendidos


          Oswald Ducrot  é um linguista francês nascido em 1932, ligado à Escola de Estudos Superiores em Ciências Sociais (École des Hautes Études en Sciences Sociales) de Paris. O que o vincula à linguística é o fato de ele ter desenvolvido, com Jean-Claude Anscombre, a Semântica da Enunciação, uma teoria pertencente às chamadas linguísticas enunciativas, ou seja, aquelas que não priorizam os estudos da língua por ela mesma, como fazem as abordagens tradicionais ou as que se agrupam em torno do estruturalismo.
        Para as linguísticas enunciativas, o que vale é focalizar a língua como forma de interlocução. Segundo Ducrot / Anscombre, a finalidade essencial do ato comunicativo é argumentar: os interlocutores se servem do código linguístico para expor sua visão de mundo, para buscar convencer o outro da justeza de suas posições.
           A fim de estudar esse papel da língua, o pesquisador deve considerar não apenas o posto, aquilo que se transmite pela superfície da linguagem, mas também o que está pressuposto e o que está subentendido.
               Pense em um contexto no qual se verifique um diálogo como:
                    L1: E a Ana? Como vai?
                    L2: Continua bonita!
o verbo continua faz pressupor que Ana sempre foi bonita. Entretanto, se substituirmos essa forma verbal por ficou, fazendo surgir Ana ficou bonita, somos levados a interpretar a frase como: “Ana não era bonita” ou “Ana não era nem feia nem bonita”.
            Conheça outros exemplos em que se trabalha com a pressuposição:
   a.    Artur deixou de beber.
   b.    Só falta João para a festa começar.
   c.    No fim de semana, o tempo permanecerá nublado.
           Repare que, em todos esses casos, há um elemento linguístico (continua, ficou, deixou, só falta, permanecerá) que desencadeia uma interpretação que, mesmo não expressa no texto, é compreendida pelo interlocutor.
         Outro recurso não explícito de que o enunciador pode se servir para expor seu pensamento e, em última instância, defender suas idéias, é o do subentendido. Nesse caso, não se encontram marcas linguísticas que desencadeiam novas leituras. A compreensão da mensagem se processa graças a um conhecimento de mundo partilhado entre enunciador e enunciatário. Por isso dizemos que os subentendidos sempre revelam os valores de uma determinada sociedade.
         Veja: suponha um pai que conversa com o filho de baixo rendimento escolar. Quando ele diz: Que beleza! O Fernandinho passou de ano sem ter de fazer exames! sem dúvida está insinuando que o outro aproveita adequadamente os ensinamentos desenvolvidos pela escola, o que não ocorre com seu filho.
        Fato semelhante acontece quando uma pessoa, ao entrar em uma sala, exclama: Que calor! Se as janelas do lugar estiverem fechadas, é natural que alguém se prontifique a abri-las, evitando assim que observações do tipo se repitam. O pedido, entretanto, não foi explicitado.
          Os subentendidos revelam, como já foi dito, visões de mundo de um determinado grupo da sociedade. Quando alguém diz, por exemplo, à semelhança de Luís Fernando Veríssimo: Espero que você se case e seja feliz...que dizer: uma coisa ou outra, está refletindo uma visão social – bem humorada, mas negativa - do casamento. Tal concepção não está presente na frase, mas quem participa do ato enunciativo onde ela foi pronunciada certamente compreenderá o que o falante está insinuando.
        Portanto, ao estudioso da semântica da enunciação, não interessa apenas o que está explícito, posto no enunciado do usuário da língua, mas também – e sobretudo - o que está pressuposto e subentendido, ou seja, o que está implícito.
       As idéias de Ducrot acerca do assunto podem ser conhecidas em O dizer e o dito, publicação da editora Pontes, Campinas, em 1987. Para uma abordagem mais acessível que a do lingüista francês, mas mais completa do que a exposta nesta página, ver Para entender o texto:leitura e redação de Platão e Fiorin (São Paulo: Ática. 2008).

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

A Questão do Signo na Antiguidade Clássica


Quem está familiarizado com a literatura produzida na área da linguística sabe o quanto se faz referência ao conceito de signo, associando-o, sobretudo, à matriz saussureana.1

Discussões sobre o signo, entretanto, remontam a longa data. Winfried Nöth, (professor de linguística e semiótica da Universidade de Kassel, Alemanha) em seu livro Panorama da semiótica. De Platão a Peirce (São Paulo: Annablume. 1998) faz referência a posições da cultura mesopotâmica - que floresceu 4 mil anos a.C – acerca do signo.

Segundo Nöth, os povos da Mesopotâmia acreditavam que os signos carregam mistérios, indicavam presságios, passíveis de serem interpretados pelos oráculos. Embora os gregos tivessem acrescentado vieses diferentes ao estudo do signo, Nöth acredita que, em termos, é possível identificar semelhanças entre o pensamento dos dois povos uma vez que os gregos também viram no signo algo escondido, oculto, que não poderia ser desvendado.

É o caso de Platão, que formulou uma teoria dos signos. Para o filósofo, os signos linguísticos – ou seja, as palavras - não chegam à natureza das coisas. Ao contrário, constituem apenas uma representação incompleta delas. Dessa forma, estudar a palavra não revela nada sobre a natureza dos seres, que se mantém insondável.

Esse raciocínio levanta a discussão, também secular, acerca das relações entre os signos e as coisas que eles representam: seriam essas relações convencionais ou naturais?

A tese de Platão indica a escolha pela arbitrariedade, ou seja, as palavras não possuem relação lógica com os objetos que elas nomeiam. Assim, o termo floresta, por exemplo, não passaria de uma convenção aceita por povos lusófonos para denominar um conjunto de árvores. Não haveria uma motivação natural para o uso da palavra.

A mesma posição sobre a natureza convencional do signo linguístico será defendida, na Antiguidade clássica, por Aristóteles.

Outra questão que se coloca aos interessados no assunto diz respeito à constituição do signo e, nesse quesito, os pontos de vista foram divergentes na época.2

Platão, por exemplo, possuía uma visão triádica do signo. Conforme seu pensamento, o signo seria composto por três elementos: o nome (ou ónoma), a ideia (ou lógos) e a coisa à qual ele se refere (prágma).

Assim como Platão, Aristóteles – que procurou abordar a teoria dos signos do ponto de vista da lógica e da retórica - também possuía uma concepção triádica do signo que, em seus escritos era designado por símbolo.

Entre os estóicos,3  mantém-se a visão. Para essa corrente, distinguem-se no signo: um significante, um significado (ou significação) e um objeto, ao qual o signo se refere.

Já entre os epicuristas, a concepção que prevaleceu foi a diádica.  Para eles, o signo seria composto por um significante e por um objeto. O significado, elemento imaterial, não é reconhecido como um componente estrutural.

A questão do signo, mesmo circunscrito ao pensamento grego, oferece uma série de matizes que podem interessar aos curiosos pelo tema. Nesse caso, é oportuna a leitura do livro de Nöth, citado acima. O autor oferece um panorama sobre o assunto, mas oferece indicações de aprofundamento na área.

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1 O signo é, assim como o ícone e o símbolo, um tipo de sinal, instrumento imprescindível à comunicação humana. Segundo Saussure, um dos traços que caracteriza o signo lingüístico – união de um conceito e uma imagem acústica - é o fato de ele ser arbitrário, aspecto polêmico entre os pesquisadores da área.

2 As divergências acerca da constituição dos signos se mantêm até hoje. Se nos ativermos apenas às posições de maior destaque, veremos que, para o pensamento de Saussure (1867 – 1913), o signo é diádico; para Peirce (1839-1914), é triádico. Na concepção diádica sausurreana, o signo é composto por um conceito e uma imagem acústica apenas; na peirceana, distinguem-se um representamem, um objeto e um interpretante.

3 Assim como em Aristóteles, entre os estóicos desenvolveu-se uma concepção segundo a qual o signo é fruto de um processo lógico, em que uma premissa conduz a um consequente, ou seja, a uma conclusão.
Isabelle Kock apresenta um aprofundamento sobre a concepção dos signos entre os estoicos, no artigo “Explicação Causal e Interpretação dos Signos segundo os Estoicos”, publicado em www.unicamp.br/cadernos. Professora da Universidade de Provence (Aix-Marseille I), o trabalho de Kock foi traduzido por Wladimir Barreto Lisboa.








terça-feira, 12 de agosto de 2014

Falas masculinas / falas femininas



O objeto de estudo da sociolinguística é amplo e variado. Como são inúmeras as células sociais, muitos fenômenos podem ser observados: a fala dos garis, dos pescadores, dos médicos, de estudantes de escolas públicas, de crianças de classes médias entre vários outros.

Um aspecto que no Brasil não tem sido muito analisado, mas que pode levar a conclusões curiosas é a diferença existente entre a fala dos homens e a das mulheres.

Para que se possa ter uma ideia do desapreço que os brasileiros têm pelo tema, basta observar as referências bibliográficas de um pequeno livro publicado pela editora Ática (série “Princípios”): o Linguagem e sexo. Trata-se de um rápido estudo de Malcolm Coulthard – um professor inglês dedicado ao estudo da linguística forense – sobre o assunto. Ainda que o livro se limite a tangenciar as questões das falas masculinas e femininas, a bibliografia é bastante diversificada. No entanto, entre os vários títulos citados pelo autor, as fontes em língua portuguesa se limitam a duas ou três, provando que muito há a ser feito, na área, pelos pesquisadores brasileiros.

O campo de estudo, entretanto, pode ser mais explorado mesmo em países que conferem, à pesquisa, uma importância maior que o nosso. Segundo Coulthard, faltam pesquisas que se dediquem, por exemplo, a verificar quais os meios verbais e os não verbais que homossexuais e travestis usam para marcar sua “feminilidade”. (1991:16)

E conclui:
Infelizmente ainda não existe uma pesquisa sólida nessa área, embora Sally McConnell-Ginet se refira ao fato de que nos Estados Unidos “transexuais procurem treinamento em linguagem feminina”.

Na verdade, os trabalhos publicados sobre o assunto merecem uma releitura, pois é preciso admitir que a posição social da mulher se alterou significativamente nas últimas décadas e que escolhas temáticas e lexicais que antes definiam com precisão a presença de um homem ou de uma mulher nos diálogos hoje se encontram alteradas.

Pesquisas realizadas em meados do século passado, por exemplo, mostravam que as conversas femininas giravam em torno das preocupações referentes a seu universo de então: filhos, marido, enfim, vida doméstica. O vocabulário empregado evitava os termos chulos, pesados, na época, circunscritos às manifestações masculinas.

Nora Galli de’ Paratesi desenvolveu, na década de 60, um trabalho em que, ao examinar as relações entre as mulheres e a linguagem utilizada, constatou a forte presença de eufemismos, figura de linguagem cuja função é, como se sabe, atenuar as ideias expressas. Entretanto, ao abordar novamente o assunto em um capítulo do livro Falas masculinas, falas femininas? Sexo e linguagem (editora Brasiliense), publicado em 1991, reconheceu que suas observações deveriam ser repensadas, pois dificilmente um autor terá assistido a uma mudança tão radical num lapso de tempo tão curto (op.cit.: 63). O novo panorama a forçou, após o exíguo período de quinze anos, a reconsiderar praticamente tudo que havia escrito (id.ibid.) até então.

As alterações ocorridas nos países ocidentais nas últimas décadas mudaram a posição da mulher no que diz respeito a seu lugar no mundo e à linguagem que ela emprega para se comunicar. Assim, se as gírias ou os chamados “palavrões” há alguns anos inexistiam nas falas femininas, hoje eles são tão frequentes quanto nas falas masculinas.

Não obstante essa evidência, estudos da área parecem ser unânimes em mostrar (Coulthard, op cit.: 45) que ainda se constatam distinções entre as duas formas de falar. Ao exemplificar sua posição, o autor indica que a linguagem dos homens e dos meninos se afasta mais da linguagem padrão do que aquela empregada pelas mulheres e meninas. Coulthard faz referência às conclusões de um estudo realizado em Reading, Inglaterra, segundo as quais

as meninas “más”, aquelas cujo comportamento era mais parecido com o dos meninos, tinham uma gramática não padrão mais próxima à dos meninos do que a das “boas”meninas.

Constata-se, portanto, que as diferenças entre as falas masculinas e femininas não se limita à altura da voz1 – mais alta nas mulheres; mais baixa nos homens – mas abrange muitas outras variáveis, que englobam a fonologia, os tópicos selecionados para as conversas, o estilo na interação conversacional, assuntos à espera de novos estudos que ratifiquem ou que alterem as parcas conclusões já existentes sobre o tema  no Brasil.

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1  A diferença na altura das vozes dos homens e das mulheres está associada à frequência, uma grandeza física. A noção de frequência, na fala, relaciona-se ao número de vezes em que as cordas vocais vibram por segundo e ao comprimento dessas cordas: quanto mais curtas, mais rapidamente elas vibram e mais alta é a altura percebida. Como as cordas vocais femininas são mais curtas que as masculinas, vibram mais rapidamente, produzindo sons mais altos. Evidentemente o inverso ocorre com a fala masculina.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

A pesquisa sociolinguística




Embora muitos cometam o engano, a pesquisa sociolinguística não é uma atividade simples de ser executada. Um trabalho desse gênero, se se pretende bem feito, requer muitos passos e cuidados.
Inicialmente, é preciso ter em mente que existe uma relação entre língua e sociedade, pois o desempenho linguístico não está dissociado da pessoa que fala, da pessoa com quem ela fala; do momento que vive nem lugar em que está. Esses fatores fazem com que o objeto de estudo da pesquisa, isto é, as relações língua e sociedade, seja bastante heterogêneo. Aparentemente caótico, ele precisa ser sistematizado, o que requer atenção e seriedade de trabalho.

Outro problema que se coloca é a delimitação do campo de pesquisa, ou seja, a escolha da célula social a ser analisada já que é impossível, de uma só vez, examinar a fala de toda uma sociedade.

Aspecto mais delicado é a seleção do informante. Quando o objetivo é determinar as características da fala de uma comunidade primitiva, pouco exposta às mudanças do mundo moderno. por exemplo, o cuidado deve ser maior, porque, nesse caso, o informante deve ter nascido na região, não pode ter se ausentado dela por muito tempo nem tido muito contato com pessoas de outras comunidades, capazes de alterar sua forma de expressão.

Recolher os dados requer, igualmente, cuidados especiais. Recomenda-se que o pesquisador deixe o informante à vontade e não lhe diga, de início, que a conversa visa a estudar sua fala. Tal declaração poderia despertar a desconfiança de que seriam apontados “erros” de língua, e o pesquisado, diante dessa hipótese, se esforçaria para adequar sua fala ao padrão culto da língua, falseando dessa forma os dados a serem recolhidos.1

Os estudiosos recomendam que, para fazer com que o entrevistado se sinta à vontade, seja-lhe solicitada a narrativa de alguma experiência pessoal. Assim, preocupado em ser fiel a sua memória, será mais difícil que ele não se esforce por aclimatar sua forma de expressão àquela usada pelo pesquisador ou por alguém escolarizado.

Esses cuidados fazem com que o observador viva, com freqüência, uma situação paradoxal: ele precisa participar da comunidade para coletar o maior número possível de dados mas, ao mesmo tempo, não pode perturbar a naturalidade do encontro.

Feito o recolhimento dos dados, o pesquisador deverá descrever  cuidadosamente a variável em exame para que ela possa ser inserida em pesquisas de caráter mais amplo, interessadas, por exemplo, em construir o mapa linguístico de uma região.

Nos trabalhos mais complexos, há outras tarefas a serem cumpridas, como elaborar envelopes de variação – de que devem constar descrições das variantes estudadas -, identificar os fatores linguísticos e não linguísticos 2 que agem sobre as variantes, projetar as transformações que, em uma dimensão histórica, podem ocorrer sobre uma fala entre outras.

Se houver interesse em obter mais informações sobre o assunto, recomenda-se a leitura de um pequeno livro de Fernando Tarallo, A pesquisa sociolinguística, que faz parte da série “Princípios”, organizada pela editora Ática.

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1 Na verdade, o padrão culto da língua é a variante que menos interessa à pesquisa sociolinguística devido a seu caráter homogêneo. Por ser a norma oficial, a empregada na comunicação de todo o país, ela não apresenta as particularidades que as demais variantes oferecem.
Como exemplo de um fator linguístico que pode influenciar uma variante, podemos citar a pronúncia do /l/ em final de sílaba: em alguns contextos, o fonema é emitido como consoante, caso do Rio Grande do Sul; em outros, ele é articulado como a semivogal /w/, o que ocorre em São Paulo.  
Escolarização, idade, sexo podem ser citados como fatores não linguísticos capazes de agir sobre a fala de um indivíduo.




segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Abrindo uma trilha para a semiótica greimasiana





Assim como ocorre com as outras ciências, a semiótica apresenta várias correntes de pensamento. Em seu livro Teoria Semiótica do Texto (2000), publicado pela editora Ática, Diana Luz P. de Barros refere-se a apenas  três delas: à encabeçada pelo norte-americano Charles Sanders Peirce; à criada pelo lingüista lituano de origem russa, Julian Algirdas Griemas, e à difundida pela  Escola de Tartu, na Estônia, fundada por  Yuri Mikhailovich Lotman, um semioticista que analisa as manifestações culturais humanas como um texto

O propósito de Barros é tratar da semiótica do texto, particularmente aquela proposta por Greimas. A seu ver, os estudos semióticos estão associados à semântica, que foi, durante a primeira metade do século passado, a parente pobre da lingüística (2000: 6). A autora menciona a semântica lexical ou estudo da palavra isolada e a semântica estrutural, que teve o mérito de propor o exame do sentido baseado em princípios e métodos, afastando-o de uma abordagem aleatória Lembra ainda que os estudos semânticos apenas alçaram voo quando se  romperam as barreiras entre a frase e o texto, passando-se a valorizar este último. Ou seja: a palavra ou a frase deixaram de ser consideradas unidades de sentido, cedendo espaço para o estudo do texto.

O objetivo da semiótica greimasiana é, então, descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz. Por exemplo, a leitura da poesia transcrita abaixo - História de uma gata leva à conclusão de que se destaca ali o contraste entre liberdade e opressão. Cabe à semiótica, de acordo com Greimas, descobrir quais recursos foram empregados pelo autor para que os leitores chegassem a essa conclusão.

Ao tratar do modo como podem ser estudados os textos, Barros assinala que o pesquisador tem a possibilidade de vê-los como um objeto de significação e como um objeto de comunicação.  No primeiro caso, é feita sua análise interna ou estrutural, quer dizer, é focalizado o modo como ele se organiza. No segundo, o texto é concebido como um objeto cultural, inserido em uma sociedade diversificada e influenciado por determinadas formações ideológicas. Deve, pois, ser examinado  em relação ao contexto sócio-histórico que o produz.

É importante lembrar que qualquer texto – verbal ou não-verbal - é objeto de estudo da semiótica. Seguindo as idéias do lingüista dinamarquês Louis Hjelmslev, os semioticistas devem abstrair as diferenças da expressão, que seria a parte superficial dos textos, e deter-se apenas no plano do conteúdo.

Para analisar uma produção textual, a semiótica greimasiana constrói um percurso gerativo do sentido que parte do nível mais simples e abstrato e chega ao mais complexo. Esse é o nível fundamental, onde se verifica uma oposição semântica mínima; No exemplo citado: liberdade x opressão. Mas, em outros textos, poderia ser natureza x cultura ou vida x morte.

Em um segundo patamar, verifica-se o nível das estruturas narrativas. Nele se instalam sujeitos e objetos que se relacionam entre si, indicando estados de conjunção ou de disjunção. No poema abaixo, aparece inicialmente um sujeito - a gata - ligada à opressão e afastada da liberdade. Essas relações se alteram, entretanto, à medida que a trama se desenrola e o sujeito gata – afasta-se da opressão para, seguindo seus amigos gatos, ligar-se à liberdade.

O terceiro nível é o do discurso ou das estruturas discursivas, quando se revelam os modos como são concretizadas as situações latentes no texto, a maneira como se estabelecem os vínculos entre o enunciador e aquele que recebe a enunciação, ou seja, o enunciatário.

A fim de concretizar os princípios da teoria semiotica greimasiana, Barros analisa uma série de textos. O primeiro deles enfoca um excerto de Os saltinbancos.


História de uma gata

Me alimentaram
me acariciaram
me aliciaram
me acostumaram.
O meu mundo era o apartamento.
Detefon, almofada e trato
todo dia filé-mignon
ou mesmo um bom filé de...gato.
me diziam, todo momento:
Fique em casa, não tome vento.
Mas é duro ficar na sua
quando à luz da lua
tantos gatos pela rua
toda noite vão cantando assim:
Nós, gatos, já nascemos pobres
porém, já nascemos livres.
Senhor, senhora, senhorio,
Felino, não reconhecerás.
De manhã eu voltei pra casa
fui barrada na portaria,
sem filé nem almofada
por causa da cantoria.
Mas agora o meu dia a dia
é no meio da gataria
pela rua virando lata
eu sou mais eu, gata
numa louca serenata
que de noite sai cantando assim:
Nós, gatos, já nascemos pobres
porém, já nascemos livres.
Senhor, senhora, senhorio,
Felino, não reconhecerás.

Luiz Henríquez, Sérgio Bardotti e Chico Buarque de Hollanda.


Conforme ficou registrado acima, ali se verificam, como oposição fundamental, os valores liberdade x dominação, sendo que à liberdade atribui-se uma conotação positiva –eufórica – enquanto à opressão, u valor  negativo - disfórico).

Nas estruturas narrativas, instala-se o sujeito gata, manipulada por outro sujeito, o dono. Essa manipulação ocorre por meio de uma tentação, pois lhe é oferecida casa, proteção, carinho, o que a faz feliz. No decorrer da história, entretanto, aparecem outros sujeitos, com novos valores, que também a tentam. Ela rompe então o acordo com o dono e firma outro contrato com seus novos amigos.

No terceiro nível, o das estruturas discursivas, deve-se proceder a uma análise do modo como o percurso mostrado até então se concretiza. Observa-se, por exemplo, que o pronome empregado é o de primeira pessoa – eu – o que confere ao texto, um efeito de subjetividade.
           
Os dados apresentados aqui são extremamente sintáticos. Para aprofundamento do assunto, recomenda-se a leitura do livro citado, que poder ser complementada pelo escrito por José Luiz Fiorin: Elementos de Análise do Discurso e publicado pela editora Contexto.


quarta-feira, 30 de julho de 2014

Para ouvir falar na obra de Peirce

Maria Lúcia Santaella é uma professora universitária especialista em semiótica. Quando escreveu O que é semiótica para a editora Brasiliense, ela se propôs oferecer um panorama dos estudos realizados na área. Nas páginas do livro, trata rapidamente do papel da semiótica – que, a seu ver, possui um campo vasto, mas não indefinido –, faz referência aos trabalhos dos russos, como Marr, Bakhtin, Iuri Lotmann, e ao pensamento de Saussure.
Seu objetivo maior, no entanto, é focalizar a teoria semiótica de Pierce (1839 – 1914). A tarefa é, como a autora reconhece, bastante árdua, pois o pensamento de Charles Sanders Perice é muito complexo e não aceita ser sintetizado em algumas páginas. De qualquer forma, Santaella apresenta uma introdução às propostas do pesquisador americano e abre portas a quem se interessa por aprofundar os conhecimentos.
Segundo a autora, Peirce era, antes de tudo, um cientista interessado em várias áreas do conhecimento. Filho de um renomado matemático de Harvard, o chamado Leonardo Da Vinci da modernidade formou-se em química pela universidade em que o pai trabalhava, mas era estudioso consciencioso de outros campos do saber como física, matemática, astronomia, biologia, geologia. Na área das ciências humanas, conhecia linguística, filologia, história, literatura, arquitetura e suas contribuições à psicologia tornaram-no o primeiro psicólogo experimental dos Estados Unidos da América. Todos esses interesses eram costurados por um fio condutor: a lógica
Complementa Santaella (1983: 22):
A quase inacreditável diversidade de campos a que se dedicou pode ser explicada, portanto, pelo fato de que se devotar ao estudo das mais diversas ciências [...] era para ele um modo de se dedicar à lógica. Seu interesse na lógica era, primariamente, um interesse na lógica das ciências.
A professora acata o consenso segundo o qual a semiótica peirceana – ao contrário daquela desenvolvida por Greimas - não possui interesse prático. Ela foi concebida a partir de um raciocínio abstrato e não apresenta vieses de ciência aplicada. A pretensão de Peirce, ao elaborar a teoria, foi criar conceitos gerais de signos que seriam capazes de servir de base a qualquer ciência aplicada.
Ele acreditava que todas as ações do ser humano – produção, realização, expressão – pertencem à área da semiótica, ou seja, à ciência dos signos. Esta, entretanto, não é onipotente, mas apenas parte de um conjunto mais amplo: o filosófico, também subordinado a um sistema mais abrangente que revela uma gigantesca arquitetura classificatórica das ciências (op.cit.: 30).
Peirce via como necessária uma teoria que focalizasse todas as espécies de signo, tarefa ampla, que deveria ser assumida por um grupo de pesquisadores o que, de acordo com Santaella, não ocorreu, uma vez que poucos estudiosos seguiram a ambição peirceana no que diz respeito ao estudo dos signos.
Segundo a proposta do cientista norte-americano, deveriam ser considerados, inicialmente, os signos que não fizessem referência à mente humana. A ideia causou impacto na época, pois, até então, o conceito de signo sempre fora associado ao cérebro do homem.1 Mas, se foi revolucionária quando apresentada, acabou se incorporando aos avanços tecnológicos e não pode mais ser vista como algo excêntrico. Para tanto, basta lembrar que a comunicação entre as máquinas se processa sem qualquer referência à consciência humana. E, no dizer de Santaella (op.cit.: 76):
Isso, para não mencionarmos as descobertas da biologia, que estenderam a noção de signo (linguagem e informação) para o campo das configurações celulares.
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1 Por exemplo, quando alguém ouve a palavra mesa, compreende seu significado porque tem, em sua mente, um conceito do que é uma mesa.


Vanda Bartalini Baruffaldi

sábado, 26 de julho de 2014

Introdução à Semiótica

          Semiótica é um termo de origem grega cuja raiz semeion quer dizer signo. Ela é, pois, a ciência dos signos ou a ciência geral de todas as linguagens. A linguística, que estuda com olhar científico as línguas humanas, por apresentar um campo de estudo mais específico, seria um hipônimo da semiótica, isto é, seria hierarquicamente subordinada a ela.

Assim como muitos outros, os estudos semióticos vêm de longa data. Nöth1 localiza na medicina a referência mais antiga a eles. Segundo esse semioticista alemão, a anamnese, ou o estudo da história médica do paciente; a diagnóstica, que focaliza os sintomas recentes da doença e a prognóstica, o tratamento das projeções de como se desenvolverão as patologias, foram campos da medicina influenciados pela ciência dos signos. Atualmente, nessa área, a sintomatologia é confundida com a semiótica.

Nöth distingue dois tempos na história da ciência: o que ele chama de avant la lettre, que diz respeito aos trabalhos dos precursores da ciência. Equivalem à época da filosofia greco-latina em que se tratava de temas de interesse da semiótica. Citem-se, como interessados no assunto, Platão, Aristóteles, os estóicos, os epicuristas, Santo Agostinho.

Na Idade Média, é proeminente o nome de São Tomás de Aquino.  Na época medieval e renascentista, criaram-se modelos ambiciosos, que visavam à interpretação de todo o mundo natural

Um pensamento curioso surgiu entre os séculos XV e XVI graças à figura de Paracelso, o pseudônimo de um cientista suíço-alemão (ele era médico, alquimista, físico, astrólogo e ocultista). Viveu de 1493 a 1541 e criou a chamada doutrina das assinaturas, que procurava estruturar um sistema de códigos com o objetivo de interpretar os signos naturais.

Para ele, Deus não é o único autor das mensagens do mundo. Ele tem a companhia de três outros autores: o ser humano, um princípio interior de desenvolvimento e as estrelas e / ou planetas. Os traços deixados no mundo por esses emitentes recebem o nome de assinaturas – daí o nome da doutrina. Essas assinaturas podem se manifestar tanto no corpo humano e, nesse caso, são estudadas pela quiromancia; como na terra, campo da geomancia; ou no fogo, assinaturas abordadas pela piromancia; ou na água, focalizadas pela hidromancia; ou nos astros, área da astrologia.

Nöth designa o outro período da história como o da semiótica propriamente dita. Floresce nos séculos XVII e XVIII e é influenciada pelo racionalismo. Muitos dos modelos da época se desenvolveram na abadia de Port-Royal, que tem em Descartes sua figura de grande destaque.

Foi, entretanto, no século XVII, ao publicar a obra Essay on human understanding, que John Locke postulou uma teoria dos signos, dando início ao pensamento semiótico que influenciaria a modernidade. Para esse estudioso, cujas propostas não são mais aceitas pelo pensamento contemporâneo, as ideias são signos que representam as coisas na mente do sujeito e as palavras, por sua vez, representam as ideias.

No século XVIII, Lambert cunha o termo semiotik – que por vezes se digladia com a palavra semiologia - ao abordar os sistemas sígnicos, em que reconhece subsistemas: as notas musicais, os gestos, os hieróglifos, os signos químicos, os astrológicos, os heráldicos, os sociais e os naturais. A grande contribuição de Lambert, entretanto, está associada ao caminho que ele abriu para a criação de uma linguagem científica e universal.

No século XX, outros nome se destacaram nos estudos semióticos Entre eles, citem-se Fichte, Novalis, Hegel, Humboldt, Umberto Eco e, de forma especial, Pierce, para a semiótica norte-americana, e Greimas, para a europeia.
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1 NÖTH, Winfried. 1998. Panorama da semiótica. De Platão a Peirce. São Paulo: Annablume.


quinta-feira, 24 de julho de 2014

Análise do discurso: exemplo de estudo de texto.

Como se registrou no texto anterior, o sujeito - assim como sua ideologia - é fruto das coordenadas espaço-temporais em que está inserido. Entenda-se por sujeito não apenas aquele que enuncia, mas também aquele que recebe a enunciação. É importante não esquecer que, para que se efetive o ato comunicativo, é necessária a existência de um denominador comum – que não se restringe ao código – entre os interlocutores, ou seja, temas, informações, valores, quer convergentes quer não.

O discurso que será analisado abaixo segue a mesma orientação: decorre de condições de produção específicas, que levaram o sujeito a se manifestar de uma determinada forma a fim de ser entendido pela audiência a que se dirigia.

O pronunciamento foi feito durante uma hora por Simon Bolívar, em 15 de fevereiro de 1819, diante do recém-criado Congresso de Angostura, na época em que a Venezuela e a Colômbia se tornaram independentes. Na ocasião, o orador analisou – segundo os historiadores, de forma aprofundada - a realidade de seu tempo. 1

A seguir, um fragmento do discurso.

A época da república, que presidi, não foi uma mera tempestade política, nem uma guerra sangrenta, nem uma anarquia popular, mas o desenrolar de todos os elementos desorganizadores; foi a inundação de uma torrente infernal que submergiu a terra da Venezuela. Um homem – e um homem como eu! - que diques poderia contrapor ao ímpeto dessas devastações? Em meio a esse pélago de angústias não fui mais que um vil joguete do furacão revolucionário que me arrebatava como uma frágil palha. Não pude fazer nem bem nem mal; forças irresistíveis dirigiram a marcha dos acontecimentos; atribuí-los a mim não seria justo e seria dar-me uma importância que não mereço. Quereis conhecer os autores dos fatos passados e da ordem atual? Consultai os anais da Espanha, da América e da Venezuela; examinai as Leis das Índias, o regime dos antigos mandatários, a influência da religião e do domínio estrangeiro; observai os primeiros atos do governo republicano; a ferocidade de nossos inimigos e o caráter nacional. Não me pergunteis sobre os efeitos desses transtornos para sempre lamentáveis; apenas podeis supor-me simples instrumento das grandes mudanças que ocorreram na Venezuela; no entanto, minha vida, minha conduta, todas as minhas ações públicas e privadas estão sujeitas à censura do povo. Representantes, vós deveis julgá-las! Submeto a história de meu mandato à vossa imparcial decisão; nada farei para eximi-la; já disse tudo o que podia em minha defesa. Se merecer vossa aprovação, terei alcançado o sublime título de bom cidadão, preferível para mim ao de Libertador, dado pela Venezuela, ao de Pacificador, que me outorgou Cundinamarca,2 e aos que o mundo inteiro possa dar.
                                                                  BOLIVAR, Simon. 1992. Escritos políticos. Campinas: Unicamp, p. 82.


Esta análise se apoiará na linguagem empregada por Bolívar e não nos dados históricos que subsidiam o texto. Ela se deterá na figura do sujeito enunciador e buscará traçar seu perfil a partir das observações que faz acerca de si mesmo. O estudo, entretanto, poderia focalizar o perfil da audiência – ou do alocutário - assim como as marcas do tempo e do espaço em que o discurso foi pronunciado.

A fim de entender a razão pela qual o locutor traça seu perfil do modo como o faz, é importante destacar, ainda que rapidamente, no texto, as características da época em que o discurso ocorreu, ou seja, suas condições de produção. Bolívar descreve seu tempo como tumultuado, decorrente de muitos elementos desorganizadores [...] ou, em outros termos, inundado por uma torrente infernal que submergiu a terra da Venezuela. Desse contexto agitado surgirá a personalidade que ele traça para seus interlocutores.

Dividamos o estudo em dois grandes blocos: aquele que define o papel social do locutor e aquele que projeta a imagem que ele faz de si mesmo.

Acerca de seu papel social, ficamos sabendo, logo no início do texto, ser ele um administrador público, de alto escalão, como prova a referência ao fato de ele ter presidido a república: A época da república que presidi...

O segundo bloco trata das características de sua personalidade. O trecho ...não fui mais que um vil joguete do furacão... revela uma primeira marca: ele se considera uma vítima das circunstâncias que, então, envolviam o país. Como decorrência dessa interpretação, valoriza sua fragilidade diante das turbulências da época (Um homem – e um homem como eu! – que diques poderia contrapor ao ímpeto dessas devastações?), o que, a seu ver, justificaria sua passividade diante das circunstâncias (Não pude fazer nem bem nem mal; forças irresistíveis dirigiram a marcha dos acontecimentos)

Em outro trecho, valoriza seu espírito democrático, o respeito à opinião pública (...minha vida, minha conduta, todas as minhas ações públicas e privadas estão sujeitas à censura do povo). Esse espírito democrático é ratificado pela sua coragem de receber críticas (Submeto a história do meu mandato a vossa imparcial decisão!) sem, entretanto, abrir mão de sua capacidade de análise, como prova o trecho em que incita a audiência a consultar documentos históricos que poderiam comprovar as decorrências funestas criadas por ações de seus antecessores:

Quereis conhecer os autores dos fatos passados e da ordem atual? [...] Não me pergunteis sobre os efeitos desses transtornos para sempre lamentáveis.

Enaltece sua modéstia, uma vez que declara considerar injusto atribuir a ele a direção que os acontecimentos tomaram na Venezuela da época. Seguem suas palavras:

Atribuí-los a mim não seria justo e seria dar-me uma importância que não mereço.

Ressalte-se, por fim, seu gosto pelo hiperbólico, como se pode notar no trecho em trata das turbulências que marcaram seu país. Para se referir a elas, emprega expressões como tempestade política; torrente infernal; furacão revolucionário...

Em suma: o momento vivido por Bolívar, as circunstâncias que condicionaram seu discurso levaram-no a produzir um texto em que ele se afigura como alguém que, embora fragilizado diante do ímpeto dos acontecimentos, emerge deles como uma autoridade moral devido a sua modéstia, a sua franqueza, ao reconhecimento de suas limitações; a seu espírito não apenas democrático como crítico, que busca respeito por sua terra. Resta saber se a figura que ele construiu corresponde ao homem que ele foi.
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1 Fonte: < http://es.wikipedia.org/wiki/Discurso_de_Angostura>. Consultado em 24 de julho.de 2014.

2 Departamento da Colômbia.

terça-feira, 22 de julho de 2014

Uma breve introdução à Análise do Discurso



A Análise do Discurso é uma corrente da linguística, que surgiu na França por volta de 1960, época em que os estudos sobre o texto substituíram aqueles focados no exame da frase. Essa linha de pensamento – que apresenta uma vertente de orientação francesa e outra, norte-americana – é fruto de reflexões de Jean Dubois, lexicólogo francês, autor de um dicionário de linguistica, e de Michel Pêcheux, filósofo envolvido com a teoria marxista. Ao lado do pensamento marxista e das conclusões da linguística, a Análise do Discurso revela ainda ascendência da psicanálise lacaniana. É, portanto, uma área de estudos interdisciplinares.

Como não poderia deixar de ser, tais influências se interpenetram. Da psicanálise lacaniana, extrai o conceito de linguagem e de sujeito. Aquela é vista por Lacan como uma cadeia de significantes que se repete e que revela, no discurso, outras palavras além daquelas lidas ou escutadas. Por exemplo, quando se diz: O Brasil continua deitado em berço esplêndido, fica estabelecida não apenas uma relação com um dos versos do Hino Nacional mas também uma crítica a um comportamento do brasileiro que vive no século XXI. Embora tais reflexões não estejam expressas, elas podem ser captadas sob as palavras que estruturam a frase.

Da mesma forma, em outro exemplo, identificam-se, pelas entrelinhas, as diferentes posições ideológicas dos enunciadores dos dois textos a seguir: a) Os sem-terra estão ludibriando a população ao armar barracas que ficam vazias e b) Para conseguir o que querem, os sem-terra tiveram que armar barracas que ficam vazias. Portanto, sob as palavras da superfície, encontram-se outras que apontam para o verdadeiro pensamento do enunciador.

Entretanto, da psicanálise, o que mais interessa à Análise do Discurso é a teoria de sujeito concebida por Lacan. Para ele, o sujeito é clivado: divide-se entre o consciente e o inconsciente e, ponto fundamental, produz textos que refletem um trabalho ideológico inconsciente, trazido à luz pela linguagem. É a análise linguística  que revelará os componentes socio-ideológicos de uma composição textual e, consequentemente, de seu produtor e correspondente interlocutor. Cabe ao analista identificar as marcas da presença do sujeito nos textos.

Quanto ao materialismo histórico, de procedência marxista, sua importância para a Análise do Discurso destaca-se no conceito de ideologia. É Althusser – filósofo francês filiado ao Partido Comunista -  quem sustenta que a  ideologia não deve ser entendida como algo abstrato, como uma mera ideia, mas como fruto das tensões sociais, do lugar que o sujeito ocupa no mundo. Assim, o discurso dos médicos revela influências do meio a que os médicos pertencem. As mesmas observações podem ser feitas acerca das ideias defendidas pelos garis. O sujeito, portanto, não tem total liberdade para pensar. Antes, ele é assujeitado pelo grupo social de que faz parte.

Embora essa seja uma assertiva vinculada ao pensamento marxista, ela encontra amparo no arcabouço teórico de Saussure, o linguista genebrino que também defendia a tese segundo a qual a ideologia deve ser estudada em sua materialidade e não de forma abstrata. Acrescentava ser a linguagem o lugar privilegiado para a transmissão de concepções ideológicas.

Reiterando a informação: em decorrência de suas relações com o materialismo histórico, a Análise do Discurso sustenta que o sujeito ocupa um lugar social, em uma época específica, sendo que esses traços espaço-temporais emergem no texto  produzido. Assim, tanto o sujeito como o sentido se encontram no mundo; são históricos. Daí se dizer que todo o texto é reflexo de um determinado momento histórico.

Nesse caso, embora a Análise do Discurso defenda uma linha de estudos muito diferente daquela proposta por Saussure, mais uma vez o linguista revela sua influência sobre esses trabalhos mais contemporâneos: assim como um elemento da língua não se define por si, mas é resultante da relação com outros elementos, a ideologia não é algo abstrato, mas conseqüência do meio que a produz. Da mesma forma, um sujeito só se define em relação a outro sujeito; nunca por si só.

Para finalizar, talvez seja elucidativo conhecer o pensamento de Dominique Maingueneau, docente da Sorbonne. Ele identifica na linguística um núcleo rígido e um núcleo de contornos instáveis. O primeiro visa a estudar a língua como se ela fosse um conjunto de regras e propriedades; já o segundo a vê como um conjunto de estratégias de interlocução, produto de sujeitos inscritos em um momento histórico.


A fim de obter mais informações, consulte-se, entre várias outras,  a obra de Eni Orlandi, talvez a estudiosa de maior projeção no Brasil no âmbito da Análise do Discurso.