sábado, 28 de junho de 2014

Algumas linhas sobre a pragmática


Como – provavelmente – todas as áreas do conhecimento humano, os estudos da lingüística dos séculos XX e XXI apresentam uma gama muito diversificada de correntes de pensamento. Encontram-se desde enfoques sobre aspectos mais tradicionais, como morfossintaxe, fonologia / fonética até concepções mais contemporâneas como aquelas que versam sobre análise do discurso, semiótica ou mesmo sobre as teorias da comunicação em seu sentido  lato.

Entre essas tendências mais modernas, encontra-se a pragmática. Assim como as demais abordagens feitas a respeito da língua ou da linguagem, a própria pragmática abriga diferenciadas linhas. Seus seguidores, entretanto, reconhecem um denominador comum a todas elas: a preocupação em “analisar, de um lado, o uso concreto da linguagem, com vistas em seus usuários (....); e, de outro lado, estudar as condições que governam essa prática” (PINTO,2001:47). Em vista dessa convergência, alguns autores sustentam que a pragmática focaliza mais a linguagem do que a língua. Faça-se a distinção: a linguagem, que possui um sentido amplo, seria o instrumento responsável pela comunicação; a língua, também responsável pela comunicação, apresentaria um sistema rigoroso, coercitivo para seus usuários.

Como a pragmática focaliza a linguagem em sua concretização, ao ver de seus seguidores, os fenômenos linguísticos não podem ser encarados como atos meramente convencionais, que se reproduzem sempre da mesma forma. Ao contrário, o ato comunicativo apresenta um  elemento criativo, inovador que o afasta da padronização. Por causa dessa natureza desestabilizadora, que se renova constantemente, é impossível descrever  todas as estruturas linguísticas.  Assim, questões de ordem normativa – como a que diz respeito ao certo / errado – são desconsideradas por essa corrente. Mais  valorizadas são as manifestações não-convencionais, as inusitadas.

Dentre as vertentes da pragmática, podem ser citados: o pragmatismo norte-americano, a teoria dos atos da fala e os trabalhos que, genericamente, podem ser arrolados sob o nome de estudos  da comunicação.

O pragmatismo norte-americano possui forte influência de Charles S. Peirce, que desenvolveu uma teoria bastante complexa, fundamentada em esquemas triádicos, entre os quais se encontra a relação - fundamental para a comunicação humana – estabelecida entre signo, objeto e interpretante, aqui entendido como o usuário, aquele a quem o signo vai dizer algo.

A Teoria dos atos da fala advém de discussões da área da filosofia para quem a linguagem é fonte de solução para problemas filosóficos.

Os genericamente chamados estudos da comunicação unem visões dos dois grupos anteriores.  É entre eles que se encontra uma releitura do “princípio de cooperação” indispensável, segundo alguns autores, para que a comunicação se efetive. Grice chegou a elaborar regras – as implicaturas conversacionais - que dirigem esse espírito cooperativo.

Os atuais representantes dessa linha veem a comunicação como um trabalho social, que se realiza com a participação de todos e, em seu tecido, estão presentes todos os conflitos inerentes à vida comum. Para eles, descrições linguísticas seriam capazes de identificar todos esses conflitos.

Atualmente acredita-se que fazem parte do escopo dos estudos da pragmática: a questão dos dêiticos; análises do papel da linguagem na formação do sujeito; problemas relativos à unicidade e à diversidade linguísticas entre outros tantos. Enfim, nenhuma manifestação da linguagem poderia ser alijada de uma abordagem da pragmática.


Duas indicações de leitura podem completar – e muito – o esboço apresentado aqui. Trata-se do artigo “Pragmática”, de José Luiz Fiorin, publicado no segundo volume da coletânea Introdução à linguística, da editora Contexto; e o estudo também denominado “Pragmática” , de Joana Plaza Pinto, incluso na coletânea homônima – Introdução à lingüística – mas publicado pela editora Cortez.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

O linguista rebelde

Se você lê jornais, certamente já entrou em contacto com o nome de Noam Chomsky. Ele é um norte-americano de Filadélfia, que estudou linguística e filosofia na Universidade de Pensilvânia, desenvolveu pesquisas em Harvard e há mais de quarenta anos leciona no MIT. Esse seu breve currículo autoriza muitos críticos a considerarem-no o maior intelectual vivo.

A rebeldia a que o título deste texto se refere está associada a suas posições, quer políticas quer científicas. Em seu ativismo político, Chomsky, embora norte-americano, apresenta-se como um crítico ácido de muitas das medidas tomadas por seu governo. Manifestou-se, por exemplo, contra a guerra do Vietnã e até hoje discorda do apoio que os Estados Unidos oferecem a Israel. Embora judeu, Chomsky valoriza a luta dos palestinos.

Na área da lingüística, também foi um rebelde. Na década de 50, apresentou uma teoria que se opunha a crenças até então vigentes, caso do modelo que explicava a aquisição da linguagem. Altamente influenciados pelas idéias de Bloomfield, os cientistas da época acreditavam que a criança adquiria a linguagem por imitação e por movimentos de ensaio e erro: tentava imitar o modo de comunicação dos pais, errava, os pais corrigiam e, nesse processo contínuo, aos poucos, dominava a estrutura de sua língua.

Segundo Chomsky, essa é uma forma limitada de encarar o aprendizado de um idioma. Para ele, a capacidade de falar, no ser humano, é inata assim como é inata a pulsão por comer ou a habilidade de andar. Acredita ele que falar é uma competência intrínseca a nosso patrimônio genético, aprimorada à medida que a vamos entrando em anos.

Ou seja, nascemos com um dispositivo que, desenvolvido, conduz a uma maturidade linguística. Desse dispositivo consta um número finito de regras, capazes de gerar um número infinito de frases bem estruturadas, “Frases bem estruturadas” não são as construídas em conformidade com as orientações de uma gramática normativa, mas formuladas de acordo com o que aceitam os falantes de uma comunidade lingüística. Trata-se da distinção - já exposta neste blog - entre as frases gramaticais e agramaticais.

Assim, aos três ou quatro anos, qualquer criança que se desenvolveu de acordo com os padrões de normalidade pode ser considerada um adulto linguístico graças a esse aparato com o qual nasceu e que foi amadurecendo gradativamente com o convívio social.

Chomsky concebeu, a partir dessa premissa, a chamada gramática gerativa, também conhecida como universal, por ser comum a todos os homens, uma vez que parte do princípio de que todo ser humano possui as mesmas condições de aprender a falar.  Se domina uma determinada língua e não outra, é porque a comunidade linguística em que está inserido se expressa por meio da língua x. São esses traços que fazem com que o pensamento de Chomsky seja conhecido como inatismo, gerativismo ou universalismo.

Ainda que essas posições tenham causado uma revolução nos meios científicos da época – muitos sustentam que a linguística alterou o modo de ver o mundo – elas não são de todo  originais. Quem se debruçar sobre a história da linguística perceberá que o inatismo ou universalismo já fazia parte do pensamento dos filósofos da linguagem do século XVII que frequentavam o monastério de Port-Royal-des-Champs. A Grammaire générale e raisonnée foi publicada por Antoine Arnaud e Claude Lancelot em 1660 e revelava forte influência do cartesianismo de René Descartes, cuja ascendência é sentida nas propostas de  Chomsky: a gramática é um conjunto de processos mentais, comuns a todos os homens e, portanto, universais.

 Um dos livros mais acessíveis para conhecer as idéias do linguista norte-americano é o escrito por John Lyons e publicado pela Cultrix: As idéias de Noan Chomsky. Se você se interessa em aprofundar as rápidas informações registradas aqui, consulte-o.



terça-feira, 24 de junho de 2014

As criações neológicas




Quando você está enfrentando algum problema, diz que está “em uma camisa de sete varas”?  E se sua prima comemora quinze anos, você diz que ela está completando “quinze primaveras”? Certamente, não!

Mas é importante que saiba que essas expressões - incompatíveis com nossa época - foram empregadas por nossos antepassados. Elas  são a prova de que a língua varia de acordo com a sociedade a que ela serve. Hoje esses modos de dizer caíram em desuso. Constituem o que chamamos de arcaísmo.

Na direção oposta aos arcaísmos, existem os neologismos. (Não se esqueça de que neo-  é um prefixo grego que significa novo. Veja exemplos: exame neonatal, pensamento neoliberl...). Os neologismos são, pois, elementos não dicionarizados, criados para suprir alguma deficiência do idioma que não oferece, em seu acervo, o termo necessário para expressar uma determinada ideia. Eles renovam a língua. Daí sua importância.

Dizer que os neologismos surgem como consequência de um déficit linguístico talvez seja inadequado. Por vezes, o idioma oferece o termo, mas, por algum motivo qualquer – que vai desde o desconhecimento até o espírito de rebeldia –, o  falante rejeita a opção e prefere  criar outra palavra.

Os leitores mais velhos hão de se lembrar que, há alguns anos, quando Fernando Collor de Mello era presidente e Antônio Magri seu ministro do trabalho, criou-se uma situação cômica por causa de um neologismo. O ministro usou, certa ocasião, ao responder a pergunta de jornalista, o adjetivo imexível, não encontrado nos dicionários da época.

Como era de esperar, foi ridicularizado, afirmando-se que ele, embora em alto cargo administrativo, não conhecia a língua. Certamente...Entretanto, é fundamental argumentar em seu favor que, mesmo sendo palavra inusitada, ela se formou de acordo com princípios que regulam a criação de neologismos em português.

Veja: quando você quer dizer que não consegue ler algo, di que o texto é ilegivel; se é algo que não consegue compreender, emprega a palavra incompreensível;  caso não s possa ouvir algo, afirma que o discurso foi inaudível. Perceba, portanto, que formamos palavras em português com o auxílio do prefixo i- e do sufixo –vel. Assim, imexível, ainda que um termo inusitado dentro da língua falada na época, foi formado de acordo com os padrões por ela impostos. É menos absurdo que pareceu à primeira vista.

E é assim que, em geral, se formam as novas palavras. Por mais desconhecidas que elas sejam, se quiserem entrar em determinado idioma, na maior parte das vezes, acabam se ajustando a regras que há tempos o regulam . Verbos como deletar, xerocopiar, twittar, que passaram a fazer parte do português em decorrência de inovações tecnológicas, enquadraram-se na terminação –ar, antiquissima em nossa língua (ela provém da terminação latina –are como laudare, amare).

Mas  esse é um modo pelos quais se formam os neologismos em português.Há outros processos – também antigos - que concorrem para essa renovação da língua. É o caso de expressões do tipo mulheres-bomba ou Operação Pente Fino, que aprecem nos exemplos abaixo, extraídos de jornais brasileiros:

Mulheres-bomba se explodiram em duas estações centrais. (Jornal da Tarde,
30.03.10)
A Operação Pente Fino está fazendo uma varredura nas ruas do bairro.  (Globo.com, 01.10.09)


Há muitos trabalhos consistentes acerca dos neologismos em nossa língua. Se você procura um acessível, leia o livro de Ieda Maria Alves:Nneologismo; criação lexical, que pertence à Série Princípios da Editora Ática. É um trabalho curto, atualizado, feito a partir de pesquisas da autora em jornais de nossa época.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

O pidgin na República de Camarões

Chamam-se línguas de contato aquelas que surgem da necessidade de comunicação entre povos que falam línguas diferentes. Foi o que ocorreu no Brasil, na época do Descobrimento. Os portugueses encontraram aqui povos que falavam idiomas muito diferentes daquele que conheciam.

Apesar disso, um intercâmbio se impunha. Não haveria como fazê-lo se não por meio de termos e expressões que misturassem todas as línguas usadas. Emergiu, então, a chamada língua geral, que servia de meio de comunicação entre os colonizadores e os povos autóctones. Essa língua foi extremamente difundida na época e teria se tornado nosso idioma oficial se d. João Vi, aqui instalado com a família real nos inícios do século XIX, não tivesse tornado o ensino do português obrigatório nas escolas da época.

Esse novo instrumento de comunicação – também chamado pidgin - é, portanto, improvisado. Aparece de forma espontânea e não pode ser considerado uma língua,  uma vez que não possui estrutura gramatical própria. Além disso, seu vocabulário é bastante restrito, limitando-se aos termos necessários para resolver os problemas de um intercâmbio pontual. Não passa, em verdade, de uma colagem dos idiomas que a constituem.

É essa a situação do chamado franglês usado na República de Camarões. Como facilmente se conclui, ele é uma mistura do francês e do inglês, línguas dos colonizadores, ambas consideradas oficiais no país. O franglês disseminou-se nas regiões urbanas e naquelas em que o contato dos franceses e ingleses se deu de forma mais intensa. Constitui hoje forma de expressão dos cantores populares.

Por causa desse uso de dois idiomas, Camarões pretende se apresentar como um país bilíngue. Para tanto, seu governo se propõe ensinar as duas línguas nos estabelecimentos de ensino. O fato, entretanto, é que poucas pessoas falam os dois idiomas. A maior parte do povo não fala nenhum dos dois – ou domina parcialmente um deles.

Para o nativo, o francês e o inglês não passam de línguas artificiais. A que eles dominam é aquela que aprenderam no berço das inúmeras tribos que constituem o país. Em seu território se falam 231 línguas, algumas das quais possuem até manifestações literárias.

O caso de Camarões é uma prova de que as línguas oficiais – sejam elas quais forem e seja onde for que se forem impostas – não conseguem substituir aquela com que entramos em contato ao nascer, com que crescemos e que, de modo geral, nos acompanha pelo resto da vida.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

O que vem a ser semântica?



“Definir o objeto da semântica não é uma tarefa simples.”

É dessa forma que Roberta Pires de Oliveira1 (2001: 17) inicia seu artigo sobre a área que, tradicionalmente, estuda o significado e que, durante muito tempo, parece não ter merecido muita atenção dos estudiosos da língua.

Ao se abrir uma gramática de orientação tradicional – como a de Domingos Paschoal Cegalla 2, por exemplo – facilmente se constata que a semântica mereceu poucos cuidados do autor. É a constatação a que se chega se comparado o número de páginas dedicadas a ela e a outros componentes linguísticos como a morfologia ou a sintaxe. Na 48ª edição da citada gramática, temos seis páginas voltadas à semântica (da 310-316); 216 destinadas à morfologia (de 91 a 308) e 292 à sintaxe (de 319 a 611).

Os conteúdos abordados giram em torno de conceitos há tempos trabalhos pelo sistema escolar brasileiro: sinônimos / antônimos; homônimos / parônimos; polissemia; sentido próprio/ figurado; denotação / conotação.

A de Pasquale Cipro Neto e Ulisses Infante – Gramática da Língua Portuguesa (São Paulo: Scipione, 1997) dedica-lhe as cinco páginas do Capítulo 29, denominado Significação das palavras. Apenas.

Linguistas mais novos têm, entretanto, procurado tirar a semântica dessa posição  marginalizada a que a vinham relegando as abordagens mais tradicionais. É ainda Oliveira (2002:18) quem assegura: ...há várias formas de descrever o significado. Há várias semânticas. Cada uma elege sua noção particular de significado.

Não obstante essa gama diversificada por meio da qual se trata o assunto, a autora centra suas atenções em três abordagens: a da semântica formal, a da semântica da enunciação e a de semântica cognitiva. Trataremos das três, da mesma forma sintética com que vimos tratando os temas neste espaço.

A semântica formal antecede as demais do ponto de vista histórico: é, portanto, a mais antiga. Segundo ela, o significado na linguagem emerge a partir de sentenças estruturadas logicamente e relacionadas com o mundo objetivo.  A verdade existe no mundo, é exterior à linguagem, que é empregada para atingi-la. Se digo: O Brasil tem uma presidenta, da ótica da semântica formal, esse é um fato do mundo e a linguagem é empregada para anunciá-lo. A linguagem, consequentemente, é um meio de  nos ligar ao mundo, à verdade.

Posição oposta possui a semântica da enunciação. De acordo com o ponto de vista de Ducrot, seu idealizador, o conceito de verdade não é externo à linguagem; o mundo não existe sema linguagem. Ele apenas existe porque ela lhe dá concretude. Essa concepção aproxima a semântica de enunciação das linhas relativistas de conceber o mundo, diferentemente da semântica formal, tida como objetivista ou realista.

A semântica cognitiva, por seu turno, postula que a linguagem não possui uma relação direta com o mundo, como crê a semântica formal. Para essa abordagem, não se pode parear linguagem e mundo. Curiosamente, os seguidores da semântica cognitiva acreditam que a significação linguística é fruto dos movimentos que faz nosso corpo ao interagir com o meio que nos envolve. Por exemplo: usamos expressões relacionadas ao conceito de espaço, como aqui, ali, lá, no teatro, porque nos movimentamos, desde crianças, por vários locais: do estofado para uma cadeira; do pai em direção à mãe, etc.

Como se observa, também questões relacionadas à significação têm sido alvo de novos estudos e novas descobertas que merecem nossa atenção.
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1 OLIVEIRA, Roberta Pires de.2001. Semântica. In: MUSSALIN, Fernanda e BENTES, Anna Christina. Introdução À lingüística. Domínios e fronteiras. Vol. 2. São Paulo: Cortez, p. 17-46.                                                                           
2 CEGALLA, Domingos Pascoal. 2010. Novíssima Gramática. São Paulo: Cia Editora Nacional.
3 CIPRO NETO, Pasquale e INFANTE,Ulisses. 1997. Gramática da Língua Portuguesa.São Paulo: Scipione.



                                                                                                                          

sábado, 14 de junho de 2014

Como a linguística pode se articular com a música



Lúcio Flávio Medeiros seguia um curso de pós-graduação em linguística e gostava da música popular brasileira. Instado a desenvolver um trabalho acadêmico, achou por bem unir seus dois interesses. Na área da linguística, buscou aplicar os princípios da teoria gerativa do texto; na da música, escolheu Três apitos e debruçou-se sobre a análise da letra dessa composição de Noel Rosa.

A teoria semiótica – ou, também, teoria gerativa do texto - foi desenvolvida por Julien Algirdas Greimas e procura explicar como se criam as produções textuais. É uma proposta complexa. O que será exposto a seguir resume de forma bastante precária o modelo teórico, mas a abordagem é compatível com o propósito deste blog.

Para explicar como se formam os textos, Greimas preconiza um caminho de três estágios. Há um nível profundo, um narrativo e um discursivo. Esses níveis, imprescindíveis para a estruturação do texto, são de caráter abstrato, portanto invisíveis, e chegam a nossos sentidos – visuais, auditivos, táteis – por meio de recursos da manifestação.

Na estrutura profunda, encontra-se uma oposição fundamental que direciona o modo como se forma o texto. Binômios como natureza e cultura, pragmática e idealismo, materialismo e espiritualidade seriam exemplos.

No nível narrativo, inicia-se a definição dos elementos que atuarão na superfície. Inserem-se os sujeitos e os objetos (que não são obrigatoriamente concretos); aponta-se para a relação existente entre eles - de conjunção ou de disjunção – e para os caminhos que essas relações seguirão daí para frente.

Usemos uma história do chamado conto maravilhoso para esclarecer o nível narrativo. Pense-se em A Gata Borralheira. Quando introduzida na trama, ela se apresenta em conjunção com valores como sacrifício, trabalho, rejeição, mas em disjunção com seus opostos, ou seja, felicidade, lazer, afeto Como se sabe, no decorrer do enredo, essas relações se modificam e, onde havia disjunção, passa a haver conjunção.

No nível discursivo, elementos como pessoa, tempo e espaço tomam forma e a estrutura textual passa a se delinear mais claramente: sabe-se o que caracteriza o sujeito, onde se localizam os fatos, em que tempo eles se passam, a(s) temática(s) emergentes.

É imprescindível assinalar que esse tipo de estrutura subjaz todo e qualquer tipo de texto e não apenas os chamados narrativos. Do ponto de vista semioticista, uma dissertação, uma descrição, a tela de um pintor, uma escultura, um espetáculo de dança submetem-se ao mesmo esquema.

Em sua análise de Três apitos, Medeiros propõe, na estrutura fundamental, a oposição indiferença e afeto. O primeiro sentimento, do ponto de vista de quem narra os fatos, possui um caráter disfórico, ou seja, negativo e está associado a um dos sujeitos da trama. O afeto, que possui um traço eufórico, associa-se ao outro sujeito.

Quando são introduzidas as personagens do enredo, facilmente se relaciona a figura masculina ao afeto (Eu me lembro de você; nos meus olhos você vê / que eu sofro cruelmente) e a feminina, à indiferença (...e está interessada / em fingir que não me vê...).

Ainda no âmbito das relações entre as personagens, nota-se que, entre ambas, deve ter havido uma intimidade, que foi rompida (Você está sem dúvida bem zangada) e que a figura masculina procura a todo custo reatar (por que não atende ao grito tão aflito / da buzina do meu carro?). Embora sem o sucesso que acreditava obter, o enamorado não pretende desistir de seu intento, revelando a persistência de seu  caráter. Para tanto, já que amada trabalha à noite, vai virar guarda-noturno...

Segundo a teoria greimasiana, o espaço é outro elemento que deve ser observado na análise de um texto. Ao focalizá-lo, Medeiros conclui que ali podem ser identificadas duas categorias: a que se refere ao espaço exterior, representado pela rua, e a que diz respeito aos espaços interiores, que se concretizam pela fábrica onde a moça trabalha e pela sala onde se encontra o piano no qual o poeta fará os versos que compõem a letra da produção musical. 

No estudo do tempo, também se verifica - ainda conforme a visão de Medeiros – uma dualidade: há o aspecto durativo, repetitivo, representado pelas ações que se reproduzem cotidianamente (Quando o apito da fábrica tecidos/ vem ferir os meus ouvidos; você no inverno / sem meias vai pro trabalho) e o pontual, aquele que ocorre em um determinado momento e que talvez não volte a acontecer: Faço junto do piano / esses versos pra você.

O autor ainda identifica, como um dos temas que perpassa o texto, o contraste entre poesia e vida pragmática. Leiam-se suas palavras (2011:100):

O narrador estabelece a oposição entre dois estilos de vida: um representado pelo fazer pano do sujeito “você” e o outro, pelo fazer versos do sujeito narrador. Ambos os fazeres carregam traços semânticos que os definem e podem sintetizar a visão do poeta:
   Fazer pano                    versus                              Fazer versos
    Obrigação                                                                    Prazer
    Servidão                                                                       Liberdade
    Mecanicidade                                                               Expressividade

Conforme se registrou, o texto que ora se publica deve ser visto como uma forma muito simplificada tanto de tratar a teoria gerativa do texto como de apresentar o estudo desenvolvido por Medeiros sobre a letra de Três apitos. A quem se interessar pelo assunto – sem o objetivo de se tornar um especialista na área - , ficam duas recomendações de leitura:

a.      o livro de Diana Luz Pessoa de Barros, Teoria Semiótica do Texto, publicado pela Editora Ática, em que a autora sintetiza a proposta de Greimas, ilustrando-a com a análise de muitos exemplos;


b.     o artigo de Lúcio Flávio Medeiros, na revista eletrônica da Pós-Graduação do UNIFIEO, vol. 5, nº 7, p. 88-102.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Um conceito e uma curiosidade



O conceito

Gramaticalidade é um termo bastante usado na linguística contemporânea. Ele designa as construções bem formadas da língua. Mas...atenção! Quando se fala em bem formadas, não se está fazendo referência àquelas compostas de acordo os padrões da norma culta. Estamos falando de construções aceitas por uma comunidade lingüística, construídas em consonância com as regras internalizadas pelos falantes.

Assim, de acordo com esse princípio, frases do tipo: As menina acabou perdendo o trem são consideradas gramaticais. Possuem gramaticalidade porque, não obstante serem um incômodo aos ouvidos de quem está acostumado ao padrão formal do português, elas são perfeitamente compreensíveis.

Compare agora a frase acima com esta outra: frios começam dias ficar a mais os. Certamente, não há usuário do português que aceite esse tipo de construção como familiar. Temos, então,  um exemplo de agramaticalidade, não porque a frase se apresente de modo incorreto em relação à norma culta de nossa língua, mas porque não está adequada à gramática que os falantes incorporaram já na infância. 

Portanto, é preciso diferenciar os dois conceitos: se gramaticalidade relaciona-se ao respeito pelas regras implícitas da língua, àquelas de sentido amplo, internalizadas pelo usuário, uma frase correta, no sentido comum, relaciona-se ao respeito que ela mostrou pelas regras de  uma das modalidades da língua que, embora seja a de maior prestígio, não é a única empregada pela comunidade.

A bibliografia sobre o assunto é vasta. Caso lhe interesse um livro acessível, consulte o escrito por Ernani Terra e publicado pela Editora Scipione. Trata-se de Linguagem, língua e fala, uma publicação direcionada para quem, sem ser especialista, interessa-se por questões de natureza linguística.

A curiosidade

A língua croata, falada na Croácia, - país que entrou nas manchetes da imprensa por ser o primeiro adversário do Brasil no Campeonato Mundial de Futebol – pertence ao ramo das línguas eslavas assim como o russo, o ucraniano, o polaco. Suas raízes mais longínquas encontram-se no indo-europeu, que também está na origem das línguas latinas, como o português e o francês, entre outras.

Assim como as línguas ocidentais, o croata emprega, em sua escrita, o alfabeto latino, mas, diferentemente de muitos desses idiomas, cada uma de suas letras corresponde a um fonema – o som que tem um significado dentro da língua.

Em português, essa correspondência não ocorre. Veja o caso da letra x: ela pode ter o som de /z/, como em exame; de /ks/ como em táxi; de /s/ como exceção. Essa falta de correspondência entre fonema e letra – ou grafema – é responsável pelas dificuldades encontradas por quem tem de aprender o português escrito. O mesmo fenômeno se verifica em francês, inglês, alemão...

Outra particularidade da língua croata é que ela apresenta uma declinação. O latim - de onde provêm as línguas neolatinas, como o francês, espanhol, português – também possuía declinação. Na modernidade, o russo e o alemão são línguas declináveis, cujas palavras mudam de forma, dependendo da função sintática  que desempenham.

Veja um caso muito primário, extraído do latim: se alguém quisesse dizer  O menino viu o lobo, teria de construir a frase com as seguintes terminações para as palavras: Puer videt lupum; mas, se quisesse dizer O lobo viu o menino, teria de usar: Lupus videt puerum. Repare que  lupus (lobo) e puer (menino) mudam de aspecto. Isso ocorre devido ao papel sintático que possuem na frase: ora são sujeito; ora, objeto.


É desse tipo mecanismo que faz uso  o croata.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Uma subversão no conceito de gramática

Se alguém lhe perguntasse o que é uma gramática, o que você responderia? 

               a. que é um conjunto de regras que ensina a falar e escrever bem?
                    b. que é um livro que mostra a forma correta de usar a língua?

Pois, de acordo com os atuais ensinamentos sobre gramática – um termo proveniente do grego -, as duas respostas não são as mais adequadas. Elas poderiam ser condizentes, no máximo, com o conceito de uso da norma culta, uma das modalidades da língua.

Joaquim Mattoso Câmara Jr (1904 – 1970), um lingüista voltado ao estudo da língua portuguesa, apoia-se em Saussure*, para definir gramática como um “sistema de meios de expressão”. Em essência, o dicionarista Aurélio Buarque de Holanda, mesmo com menos autoridade, não diverge da ideia. Escreve ele que gramática é "o estudo ou tratado dos fatos da linguagem, falada ou escrita, e das leis naturais  que a regulam".
                        
Essas considerações levam-nos a vincular o termo mais ao que é espontâneo, natural, do que ao que é construído, artificial. As premissas nos permitem concluir, igualmente, que a gramática dedica-se a observar não só os princípios extrínsecos à língua, mas também aqueles que lhe são intrínsecos.

 Não é difícil notar a diferença entre leis intrínsecas e extrínsecas. As primeiras são as que regulam a fala espontânea dos indivíduos de uma determinada comunidade linguística. Por exemplo: nenhum falante do português – escolarizado ou não - colocaria o artigo após um nome. Ninguém diria: Metroviários os de São Paulo decretaram paralisação uma. Essa ordem de palavras, ainda que aceita em outras línguas, fere a índole do português e soa estranha a qualquer usuário, mesmo aquele que não sabe ler ou escrever. A frase – ou essa sintaxe frasal – vai de encontro à chamada gramática intrínseca da língua. Aquela que é natural, que se aprende em casa, que não se precisa de escola para conhecer.

Já as extrínsecas estão ligadas ao conceito convencional, a esse que todos usam quando se pergunta o que é gramática. Elas refletem sobre a língua, descrevem seus mecanismos, prescrevem suas leis. É graças a elas que sabemos, por exemplo, que a é uma vogal, que b é uma consoante e que a união dos dois fonemas cria a sílaba ba. É também por essa gramática explícita que classificamos a palavra mesa como um substantivo comum, simples, feminino, dissílabo...; que sabemos não ser conveniente falar Nós vai no cinema no sábado em ambientes que exigem o conhecimento da norma culta.

Você percebeu, portanto, que quando afirmamos ser o propósito da gramática ensinar a falar e escrever bem, estamos limitando excessivamente o alcance de sua área, mesmo porque, ainda que toda língua possua uma gramática, nem todas possuem uma gramática formal.

Veja: sem uma estrutura gramatical, não conseguiríamos nos entender. Já pensou se cada um dos falantes de uma língua resolvesse usá-la como bem lhe aprouvesse? A língua deixaria de ser um instrumento de comunicação. Assim, é preciso que haja regras, e que essas regras sejam obedecidas para que a comunicação se efetive. Essas leis do cotidiano, entretanto, não são ditadas por ninguém em especial: são fruto do um consenso estabelecido entre os usuários.

Temos que diferenciar, portanto, a gramática intrínseca da extrínseca. Mesmo que ambas sejam coercitivas - todos os usuários da língua têm de respeitar regras se quiserem ser compreendidos – a intrínseca é adquirida no berço enquanto a extrínseca depende dos mecanismos formais da escolarização para ser aprendida,

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*Ferdinand de Saussure é considerado o pai da lingüística moderna,






domingo, 8 de junho de 2014

O discurso religioso

Dizemos ser o papel primordial da linguagem expressar, comunicar o que se passa ou na mente ou com as emoções de um indivíduo. Os mais recentes estudos sobre o assunto, entretanto, sustentam que usamos a linguagem, sobretudo, para  persuadir. Em outros termos: sempre que nos dirigimos a alguém, mesmo nas situações mais simples, objetivamos, na verdade, alterar seu comportamento.

Se observarmos algumas cenas triviais, veremos que a ideia tem fundamento. Pense, por exemplo, em uma pessoa que diz: Feche a porta, por favor. Certamente, ela não quer que o outro apenas a olhe e não se empenhe em fazer o que lhe foi pedido. E a mesma intenção se verifica tanto em situações mais simples – como dizer Oi! ou Bom dia! – como nas mais complexas quando a intenção é decididamente convencer. Então, articulamos as idéias de modo cuidadoso, selecionamos dados, argumentos, enfim, construímos um texto argumentativo que visa mostrar ao interlocutor a justeza de nossas posições.

Partindo desse princípio - de que nossas comunicações são carregadas de conteúdo ideológico que procuram levar o outro a fazer o que desejamos ou a crer no que acreditamos - Benedita de Cássia Durigan Piascitelli desenvolveu um trabalho acadêmico em que se propôs analisar o discurso religioso. Apoiou-se, para tanto, em conceitos de dois aparatos teóricos de linha francesa: a Análise do Discurso e a semiótica greimasiana.

Segundo a autora, esse tipo de discurso, assim como os outros, faz parte de um contexto social, responsável pela construção do indivíduo e sua história. Exerce, portanto, coerção sobre quem o recebe. A fim de provar suas convicções, ela estudou três textos proferidos em igrejas evangélicas pentecostais, focalizando as estratégias argumentativas usadas pelo pastor.

Grosso modo, a análise dos três textos mostrou que, no discurso religioso, para exercer sua manipulação – encarada, no trabalho, sem o viés negativo em geral associado a ela – o sacerdote emprega estratégias argumentativas por meio das quais ora intimida ora seduz o outro.

Como forma de intimidação, destaque-se o uso do imperativo, como em

Não deixe que as pessoas de fora te humilhem, não queira ser como todo o mundo, não deixe que a Rede Globo dite sua moda, garota!

e o emprego de expressões do tipo lá fora, o mundo que classificam os espaços onde se encontram os homens: os fieis, seguidores da palavra divina, e os outros, aqueles que não a respeitam. Os primeiros são os participantes do auditório, vistos como seres especiais, protegidos; os outros seriam os adversários de Deus. Instala-se, consequentemente, a oposição entre os tentadores e os santos, ou que perseguem a santidade.

Já a sedução se processa por outros tipos de construções frasais. Por meio delas, o pastor procura se aproximar da audiência, buscando cativar sua simpatia e alterar seu comportamento. É o que se observa pelo emprego de um vocabulário popular, como ...(não ter) vergonha na cara; pela utilização de uma sintaxe coloquial, com inversões desnecessárias como O cabelo dele parece que a vaca deu uma lambida (em vez de Parece que a vaca deu uma lambida no cabelo dele, estrutura usada para criticar os jovens que seguem, sem crítica, o comportamento de artistas do momento); pela presença de anacolutos: Hoje a gente no meio dos jovens nós vemos.

Tais tentativas de seduzir, conclui Cássia Piascitelli, na verdade, mascaram o tom impositivo do discurso religioso pois, na busca de aproximação com o auditório, o que o enunciador busca, em última instância, é persuadir o outro a seguir o padrão comportamental que a igreja propõe.







quinta-feira, 5 de junho de 2014

De volta ao texto verbal.

Você sabe para que serve um texto seja ele verbal ou não-verbal?

Exatamente! Para se expressar, para comunicar. Para nós, que pertencemos às sociedades humanas, ele é imprescindível. Bakhtin, um filósofo russo que viveu nos inícios do século passado, sustentava que vivemos atolados em textos: mal saímos de um, entramos em outro. E repare que é assim mesmo! Até nos monólogos interiores ou em nossos momentos de reflexão, fazemos uso de textos.

Sua dimensão não importa. Eles podem ser longos ou curtos. Quando se fala Oba! , por exemplo, a palavra – que é uma interjeição - está sendo empregada para exteriorizar uma sensação. É um texto. Se, ao contrário, é necessário desenvolver sofisticadas idéias que provem convicções acerca de um determinado tema, pode-se produzir uma tese, mas, mesmo assim, um texto.

Entretanto, note que os textos têm de se ajustar ao contexto em que são empregados. Daí dizermos que eles sempre refletem um momento histórico – o que não significa, de modo nenhum, que devam se referir a fatos históricos! Ninguém diria, por exemplo, Em junho, começa o inverno em nosso país, se morasse em alguma região do hemisfério norte; nem diria Neymar é considerado um grande jogador, há trinta anos. Os textos constituem, portanto, o retrato de uma determinada época.

Outro cuidado que devemos ter refere-se ao alinhavo entre os termos que os formam. Textos não são aglomerados de palavras. Ao contrário, essas têm de estar relacionadas umas às outras a fim de que façam sentido para quem os recebe. De que adianta retirar do dicionário dez palavras de uma língua, colocá-las uma ao lado da outra se todas, juntas, não querem dizer nada? Portanto, é imprescindível que um texto transmita um significado.

Mas há outros aspectos que não podem ser esquecidos. É o caso de articular o que queremos transmitir a um determinado formato – ou de tipo - do texto. Quando pretendemos contar uma história para uma criança, fazemos uso de uma narração, que é uma modalidade textual; quando queremos expor algo que sabemos, construímos um texto dissertativo. Se pretendermos defender uma ideia, formulamos uma argumentação;  se o propósito é divulgar um produto, fazemos uso de um texto publicitário. De uma forma ou de outra, em todas as situações, sempre acionamos muitos dos conhecimentos que estão armazenados em nossa memória para que eles possam ser selecionados e combinados entre si.

E há outro ponto fundamental: é o respeito a um determinado código, ou seja, uma língua Caso contrário, não seremos entendidos. Assim, é preciso ter um conhecimento lingüístico  - se pensarmos na linguagem verbal – quer dizer, ter um domínio, mesmo que precário, da estrutura gramatical e lexical (relativa ao vocabulário) de um idioma se quisermos que nosso texto cumpra seu papel.   

Como você pôde perceber, embora produzir ou receber textos seja uma ação trivial, em verdade, essa competência se reveste de uma complexidade de que as pessoas geralmente não têm consciência. São esses aspectos inconscientes que tornam os estudos sobre a linguagem um campo muito instigante.









terça-feira, 3 de junho de 2014

Uma pausa para a linguagem circense

Quem vive no Brasil sabe que o circo passou a ser, nos últimos anos, entretenimento marginal. Restrito às regiões periféricas dos grandes centros urbanos, é apenas ali que, nos grandes terrenos, ainda se monta uma ou outra tenda para distrair um número cada vez menor de interessados.

Pois, apesar desse cenário ou, talvez, por causa dele realizou-se em São Paulo, na última semana de maio – mais precisamente de vinte e três a primeiro de junho – uma mostra de espetáculos estruturados em torno da linguagem circense. 

O objetivo era, segundo seus organizadores, apresentar propostas capazes de mostrar que esse tipo de expressão não estava esgotada, mas, ao contrário, poderia ser revigorada e voltar a atrair novos olhares.

Parece que os objetivos foram alcançados ao menos se se considerarem os três que passarão a ser comentados. O primeiro não trouxe grande inovação na forma, já que os números reproduziram, em grande parte, o que se conhece acerca do circo. A inovação deveu-se aos protagonistas do espetáculo, todos eles deficientes. Havia cegos, cadeirantes, mudos, surdos, que apresentaram quadros geralmente vivenciados pelos chamados “normais”.

O grupo é formado por brasileiros e ingleses e expuseram uma performance incomum a pessoas que enfrentam limitações físicas. Ressalte-se a força psicológica transmitida pelos atores que não transmitem em nenhum momento, sinal de que necessitam da piedade da plateia.

O espetáculo – que se chama Belonging – revela, como o nome indica, o desejo e o direito que têm todos de ser tratados como iguais e de participar de todo tipo de fazer da sociedade humana.

O outro grupo veio da Austrália. É o Circa. Nesse caso, encontra-se uma radical inovação na forma de se expressar do circo. Não há palhaços – embora alguns quadros busquem o cômico – nem malabares – ainda que se encontrem números que exigem equilíbrio refinado do artista. O que se encontra são ginastas particularmente bem treinados, que desenvolvem movimentos precisos, leves, próximos aos de um bailado. O espetáculo talvez se afaste, de fato, da natureza do circo, mas oferece certamente subsídios que poderão ser usados com grande efeito por  cenógrafos da arte circense.

Por fim, algumas palavras sobre o grupo espanhol que preparou uma paródia do circo tradicional. Se o início dos trabalhos gera certa desconfiança no espectador - parece que se encontrará uma mera reprodução do sempre visto - em pouco tempo se percebe que a ideia do grupo é despertar o riso, procurando destacar o ridículo de situações suficientemente conhecidas.


Parabenize-se, portanto, uma vez mais, o Sesc, cuja iniciativa de focalizar a linguagem circense provou que todas as atividades humanas – mesmo as que pareçam saturadas – podem e devem se renovar. 

domingo, 1 de junho de 2014

O Professor




Você já leu um livro chamado O professor? Ele foi escrito por Cristovão Tezza, um brasileiro nascido em Santa Catarina, mas que desenvolveu grande parte de sua vida no Paraná.

O protagonista da obra é Heliseu da Motta e Silva, como o título sugere, um docente de universidade pública que atua na área de Letras, em uma disciplina chamada Gramática Histórica, atualmente um tanto marginalizada, mas importante para conhecer a origem e as transformações de uma língua.

A trama gira em torno da vida desse professor e focaliza, sobretudo, suas relações pessoais: com a mulher, Mônica, com o filho, com os pais, com os colegas de trabalho e com Therèze (escrito com um acento apenas), a orientanda com quem, durante um período de tempo, esteve afetivamente envolvido.

O ponto forte do livro, entretanto, não está no enredo, mas no modo como foi construída a narrativa. O tempo, o espaço e as personagens que correspondem ao momento em que se narram os fatos são altamente restritos. O aspecto temporal limita-se à preparação de Heliseu para a solenidade em que receberá um prêmio da instituição onde trabalhou durante anos; ele está em sua casa, mas se movimenta apenas pelo banheiro, pelo quarto e pela sala de refeições (dimensão espacial); como personagens, além do próprio Heliseu, há somente uma antiga empregada, a quem os hábitos da casa são familiares.

Ancorada nesse tripé, a trama se desenvolve, entretanto, com vários episódios, todos vivos apenas na memória do protagonista. Assim, os fatos são relatados como e quando lhe vêm à mente, de modo desorganizado, aleatório. É por essas lembranças que sabemos ser ele viúvo – Mônica teve morte inesperada: tratava de suas plantas no terraço do apartamento quando se desequilibrou e caiu.

Temos conhecimento também das relações tumultuadas com o filho, que assume a homossexualidade e vai morar no exterior; de sua aversão por uma amiga de sua esposa – insinuam-se relações além da amizade, mas não se encontram, no texto, fatos que comprovem a hipótese. O leitor recebe também rápidas informações sobre o panorama político – com que o protagonista não se envolve - vigente no Brasil da época (década de 80).

Além desse fluxo desordenado da consciência, é digna de nota a alternância de pessoa do discurso que se observa na construção do narrador: por vezes, nós nos deparamos com a primeira pessoa (aquela que gira em torno do eu):

...estava ali diante de mim o meu nome no cronograma do semestre...

Mas, por vezes, ocorre a terceira pessoa (a que emprega o ele):

                              Fechou os olhos. Estava no cafezinho do departamento...

sem que se observe qualquer indício da mudança: não há alteração de linha nem sinal de pontuação que aponte a troca de uma pessoa por outra. Esse recurso, que no início causa estranheza, aos poucos vai sendo incorporado à leitura e não compromete em absoluto a compreensão do texto.

Assim, não obstante a ancoragem de tempo, espaço e personagens ser bastante econômica, a trama demonstra vivacidade, repleta dos fatos que rechearam a vida de um homem à beira da aposentadoria.

O livro tem sido bem avaliado. Se você gosta de ler, O Professor é uma boa indicação.  Na forma impressa, foi publicado pela Editora Record (São Paulo / Rio de Janeiro); na digital, é vendido pela Amazon.


Nota: Tezza possui uma produção diversificada. Entre os livros publicados, encontra-se O filho eterno, que recebeu vários prêmios, tem traduções para outras língua e adaptação para o teatro. Há também um projeto de adaptá-lo ao cinema.