sábado, 14 de junho de 2014

Como a linguística pode se articular com a música



Lúcio Flávio Medeiros seguia um curso de pós-graduação em linguística e gostava da música popular brasileira. Instado a desenvolver um trabalho acadêmico, achou por bem unir seus dois interesses. Na área da linguística, buscou aplicar os princípios da teoria gerativa do texto; na da música, escolheu Três apitos e debruçou-se sobre a análise da letra dessa composição de Noel Rosa.

A teoria semiótica – ou, também, teoria gerativa do texto - foi desenvolvida por Julien Algirdas Greimas e procura explicar como se criam as produções textuais. É uma proposta complexa. O que será exposto a seguir resume de forma bastante precária o modelo teórico, mas a abordagem é compatível com o propósito deste blog.

Para explicar como se formam os textos, Greimas preconiza um caminho de três estágios. Há um nível profundo, um narrativo e um discursivo. Esses níveis, imprescindíveis para a estruturação do texto, são de caráter abstrato, portanto invisíveis, e chegam a nossos sentidos – visuais, auditivos, táteis – por meio de recursos da manifestação.

Na estrutura profunda, encontra-se uma oposição fundamental que direciona o modo como se forma o texto. Binômios como natureza e cultura, pragmática e idealismo, materialismo e espiritualidade seriam exemplos.

No nível narrativo, inicia-se a definição dos elementos que atuarão na superfície. Inserem-se os sujeitos e os objetos (que não são obrigatoriamente concretos); aponta-se para a relação existente entre eles - de conjunção ou de disjunção – e para os caminhos que essas relações seguirão daí para frente.

Usemos uma história do chamado conto maravilhoso para esclarecer o nível narrativo. Pense-se em A Gata Borralheira. Quando introduzida na trama, ela se apresenta em conjunção com valores como sacrifício, trabalho, rejeição, mas em disjunção com seus opostos, ou seja, felicidade, lazer, afeto Como se sabe, no decorrer do enredo, essas relações se modificam e, onde havia disjunção, passa a haver conjunção.

No nível discursivo, elementos como pessoa, tempo e espaço tomam forma e a estrutura textual passa a se delinear mais claramente: sabe-se o que caracteriza o sujeito, onde se localizam os fatos, em que tempo eles se passam, a(s) temática(s) emergentes.

É imprescindível assinalar que esse tipo de estrutura subjaz todo e qualquer tipo de texto e não apenas os chamados narrativos. Do ponto de vista semioticista, uma dissertação, uma descrição, a tela de um pintor, uma escultura, um espetáculo de dança submetem-se ao mesmo esquema.

Em sua análise de Três apitos, Medeiros propõe, na estrutura fundamental, a oposição indiferença e afeto. O primeiro sentimento, do ponto de vista de quem narra os fatos, possui um caráter disfórico, ou seja, negativo e está associado a um dos sujeitos da trama. O afeto, que possui um traço eufórico, associa-se ao outro sujeito.

Quando são introduzidas as personagens do enredo, facilmente se relaciona a figura masculina ao afeto (Eu me lembro de você; nos meus olhos você vê / que eu sofro cruelmente) e a feminina, à indiferença (...e está interessada / em fingir que não me vê...).

Ainda no âmbito das relações entre as personagens, nota-se que, entre ambas, deve ter havido uma intimidade, que foi rompida (Você está sem dúvida bem zangada) e que a figura masculina procura a todo custo reatar (por que não atende ao grito tão aflito / da buzina do meu carro?). Embora sem o sucesso que acreditava obter, o enamorado não pretende desistir de seu intento, revelando a persistência de seu  caráter. Para tanto, já que amada trabalha à noite, vai virar guarda-noturno...

Segundo a teoria greimasiana, o espaço é outro elemento que deve ser observado na análise de um texto. Ao focalizá-lo, Medeiros conclui que ali podem ser identificadas duas categorias: a que se refere ao espaço exterior, representado pela rua, e a que diz respeito aos espaços interiores, que se concretizam pela fábrica onde a moça trabalha e pela sala onde se encontra o piano no qual o poeta fará os versos que compõem a letra da produção musical. 

No estudo do tempo, também se verifica - ainda conforme a visão de Medeiros – uma dualidade: há o aspecto durativo, repetitivo, representado pelas ações que se reproduzem cotidianamente (Quando o apito da fábrica tecidos/ vem ferir os meus ouvidos; você no inverno / sem meias vai pro trabalho) e o pontual, aquele que ocorre em um determinado momento e que talvez não volte a acontecer: Faço junto do piano / esses versos pra você.

O autor ainda identifica, como um dos temas que perpassa o texto, o contraste entre poesia e vida pragmática. Leiam-se suas palavras (2011:100):

O narrador estabelece a oposição entre dois estilos de vida: um representado pelo fazer pano do sujeito “você” e o outro, pelo fazer versos do sujeito narrador. Ambos os fazeres carregam traços semânticos que os definem e podem sintetizar a visão do poeta:
   Fazer pano                    versus                              Fazer versos
    Obrigação                                                                    Prazer
    Servidão                                                                       Liberdade
    Mecanicidade                                                               Expressividade

Conforme se registrou, o texto que ora se publica deve ser visto como uma forma muito simplificada tanto de tratar a teoria gerativa do texto como de apresentar o estudo desenvolvido por Medeiros sobre a letra de Três apitos. A quem se interessar pelo assunto – sem o objetivo de se tornar um especialista na área - , ficam duas recomendações de leitura:

a.      o livro de Diana Luz Pessoa de Barros, Teoria Semiótica do Texto, publicado pela Editora Ática, em que a autora sintetiza a proposta de Greimas, ilustrando-a com a análise de muitos exemplos;


b.     o artigo de Lúcio Flávio Medeiros, na revista eletrônica da Pós-Graduação do UNIFIEO, vol. 5, nº 7, p. 88-102.

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