Lúcio Flávio Medeiros seguia um
curso de pós-graduação em linguística e gostava da música popular brasileira.
Instado a desenvolver um trabalho acadêmico, achou por bem unir seus dois
interesses. Na área da linguística,
buscou aplicar os princípios da teoria gerativa do texto; na da música,
escolheu Três apitos e debruçou-se
sobre a análise da letra dessa composição de Noel Rosa.
A teoria semiótica – ou, também,
teoria gerativa do texto - foi desenvolvida por Julien Algirdas Greimas e procura
explicar como se criam as produções textuais. É uma proposta complexa. O que
será exposto a seguir resume de forma bastante precária o modelo teórico, mas a
abordagem é compatível com o propósito deste blog.
Para explicar como se formam os
textos, Greimas preconiza um caminho de três estágios. Há um nível profundo,
um narrativo e um discursivo. Esses níveis, imprescindíveis para a estruturação do
texto, são de caráter abstrato, portanto invisíveis, e chegam a nossos sentidos
– visuais, auditivos, táteis – por meio de recursos da manifestação.
Na estrutura profunda, encontra-se uma oposição fundamental que direciona o modo como se forma o texto. Binômios como natureza e cultura, pragmática e idealismo, materialismo e espiritualidade
seriam exemplos.
No nível narrativo, inicia-se a
definição dos elementos que atuarão na superfície. Inserem-se os sujeitos e os
objetos (que não são obrigatoriamente concretos); aponta-se para a relação
existente entre eles - de conjunção ou de disjunção – e para os caminhos que
essas relações seguirão daí para frente.
Usemos uma história do chamado
conto maravilhoso para esclarecer o nível narrativo. Pense-se em A Gata Borralheira. Quando introduzida
na trama, ela se apresenta em conjunção com valores como sacrifício, trabalho,
rejeição, mas em disjunção com seus opostos, ou seja, felicidade,
lazer, afeto Como se sabe, no decorrer do enredo, essas relações
se modificam e, onde havia disjunção, passa a haver conjunção.
No nível discursivo, elementos
como pessoa, tempo e espaço tomam forma e a estrutura textual passa a se
delinear mais claramente: sabe-se o que caracteriza o sujeito, onde se
localizam os fatos, em que tempo eles se passam, a(s) temática(s) emergentes.
É imprescindível assinalar que
esse tipo de estrutura subjaz todo e qualquer tipo de texto e não apenas os
chamados narrativos. Do ponto de vista semioticista, uma dissertação, uma
descrição, a tela de um pintor, uma escultura, um espetáculo de dança
submetem-se ao mesmo esquema.
Em sua análise de Três apitos, Medeiros propõe, na
estrutura fundamental, a oposição indiferença e afeto. O primeiro
sentimento, do ponto de vista de quem narra os fatos, possui um caráter
disfórico, ou seja, negativo e está associado a um dos sujeitos da trama. O afeto,
que possui um traço eufórico, associa-se ao outro sujeito.
Quando são introduzidas as
personagens do enredo, facilmente se relaciona a figura masculina ao afeto (Eu me lembro de você; nos meus olhos você vê / que eu sofro
cruelmente) e a feminina, à indiferença
(...e está interessada / em fingir que
não me vê...).
Ainda no âmbito das relações
entre as personagens, nota-se que, entre ambas, deve ter havido uma intimidade,
que foi rompida (Você está sem dúvida bem
zangada) e que a figura masculina procura a todo custo reatar (por que não atende ao grito tão aflito / da
buzina do meu carro?). Embora sem o sucesso que acreditava obter, o
enamorado não pretende desistir de seu intento, revelando a persistência de
seu caráter. Para tanto, já que amada
trabalha à noite, vai virar
guarda-noturno...
Segundo a teoria greimasiana, o
espaço é outro elemento que deve ser observado na análise de um texto. Ao
focalizá-lo, Medeiros conclui que ali podem ser identificadas duas categorias: a
que se refere ao espaço exterior, representado pela rua, e a que diz respeito aos
espaços interiores, que se concretizam pela fábrica onde a moça trabalha e pela
sala onde se encontra o piano no qual o poeta fará os versos que compõem a
letra da produção musical.
No estudo do tempo, também se
verifica - ainda conforme a visão de Medeiros – uma dualidade: há o aspecto
durativo, repetitivo, representado pelas ações que se reproduzem cotidianamente
(Quando o apito da fábrica tecidos/ vem ferir os meus ouvidos; você no inverno / sem meias vai pro trabalho)
e o pontual, aquele que ocorre em um determinado momento e que talvez não volte a acontecer: Faço junto do piano / esses
versos pra você.
O autor ainda identifica, como um dos temas que perpassa o
texto, o contraste entre poesia e vida pragmática. Leiam-se suas palavras
(2011:100):
O narrador estabelece a oposição entre
dois estilos de vida: um representado pelo fazer pano do sujeito “você” e o
outro, pelo fazer versos do sujeito narrador. Ambos os fazeres carregam traços
semânticos que os definem e podem sintetizar a visão do poeta:
Fazer pano versus Fazer versos
Obrigação Prazer
Servidão Liberdade
Mecanicidade Expressividade
Conforme se registrou, o texto
que ora se publica deve ser visto como uma forma muito simplificada tanto de
tratar a teoria gerativa do texto como de apresentar o estudo desenvolvido por
Medeiros sobre a letra de Três apitos.
A quem se interessar pelo assunto – sem o objetivo de se tornar um especialista
na área - , ficam duas recomendações de leitura:
a. o livro de Diana Luz Pessoa de Barros, Teoria
Semiótica do Texto, publicado pela Editora Ática, em que a autora sintetiza
a proposta de Greimas, ilustrando-a com a análise de muitos exemplos;
b. o artigo de Lúcio Flávio Medeiros, na revista eletrônica da Pós-Graduação do
UNIFIEO, vol. 5, nº 7, p. 88-102.
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